por Sam Storms
6. A preocupação principal de Gaffin diz respeito aos chamados dons de revelação. Suas considerações focalizam Efésios 2:11-21 (especialmente v.20) e o ministério fundamental dos apóstolos e profetas. Diz que os apóstolos e profetas pertencem ao período fundamental, e não ao da superestrutura. Mas esse conceito desconsidera os versículos 21 e 22, em que Paulo se refere à superestrutura como ainda sendo edificada, por assim dizer, enquanto Paulo fala/escreve (observe o uso consistente do tempo presente nos v.21,22). Em outras palavras, os apóstolos e profetas no versículo 20, entre os quais Paulo, também estavam contribuindo para a superestrutura – simultaneamente com a obra de lançar os alicerces sobre os quais esta estava sendo edificada. Devemos tomar o cuidado de não forçar a metáfora para além do que Paulo pretendia com ela.
Empregando uma analogia, uma vez que um homem estabelece uma companhia, redige seus estatutos sociais, contrata seus funcionários, e faz todo o trabalho essencial para deitar os alicerces para sua futura operação e produção, ele não desaparece de cena ou deixa de servir à companhia em outras capacidades. Conforme indica Deere: “O fundador de uma companhia ou sociedade anônima sempre será incomparável no sentido de ter sido o fundador, mas isso não significa que a companhia não pode ter diretores ou presidentes no futuro”[2].
Segundo a opinião de Gaffin, todos os profetas do NT operaram como fundadores. Nada existe, porém, para sugerir que “os profetas” em Efésios 2:20 sejam uma referência exaustiva a todos os profetas possíveis na igreja. Por que devemos concluir que o único tipo de atividade profética deve ser “fundamental” quanto à sua natureza, especialmente à luz do que o NT diz a respeito da extensão e efeito do ministério profético? Simplesmente não é possível acreditar que todas as expressões verbais proféticas fizessem parte do alicerce da igreja, lançado de uma vez por todas. O próprio NT não declara isso em nenhum lugar. Além disso, nem todos quantos ministravam profeticamente eram apóstolos. Portanto, o fim do cargo apostólico não é argumento a favor da cessação do dom de profecia.
Sugerir que Efésios 2:20 objetiva todos os profetas possíveis ativos na igreja primitiva não condiz com tudo quanto lemos a respeito desse dom no restante do NT. Semelhante sugestão exigiria que acreditássemos que todos os que profetizavam no dia do Pentecoste e nos anos que se seguiram, “filhos, filhas jovens, velhos, servos e servas”, estavam deitando os alicerces da igreja. O cessacionista pede que acreditemos na promessa de Joel 2, longamente aguardada, do derramamento sem precedentes do Espírito Santo “sobre todos os povos” (At.2:17), com sua atividade de revelação resultante de sonhos, visões e profecia, fosse cumprida somente em algumas poucas pessoas, cujos nos funcionaram de modo exclusivamente fundamental, iniciatório e, portanto, de forma temporária! Essa teoria explica adequadamente o texto? A experiência reveladora e carismática do Espírito, predita por Joel, e citada por Pedro, dificilmente pode ser considerada completamente cumprida por uma pequena minoria de crentes durante o decurso de meros sessenta anos, e apenas no século I. Parece, pelo contrário, que Joel e Atos 2, juntos, descrevem a experiência cristã normativa para a totalidade da comunidade cristã na totalidade da era da aliança, denominada “os últimos dias”.
O cessacionismo também gostaria que acreditássemos que um grupo de discípulos anônimos em Éfeso (At. 19:1-7), que profetizaram quando se converteram (e notemos que nenhum deles voltou a ser mencionado nos registros, em nenhuma outra ocasião), assim fizeram com o propósito de deitarem os alicerces da igreja. Forçar as evidências, também, é pensar que as quatro filhas de Filipe faziam parte da fundação, de uma vez por todas, da igreja (21:9).
Segundo a tese de Gaffin, toda a atividade profética é atividade de deitar os alicerces. Mas se assim fosse, Paulo não teria falado da profecia como um dom outorgado a pessoas comuns “visando o bem comum” do corpo de Cristo (1 Co. 12:7-10)? Devemos acreditar que Paulo exortou todos os crentes, em todas as igrejas, a buscar com dedicação exercer significância fundamental para a igreja universal (1 Co.14:1, 39)? Pelo contrário, a profecia deve ser desejada porque seu propósito é comunicar revelação da parte de Deus que “encorajará” os desencorajados, “consolará” os desconsolados, e “fortalecerá” os fracos e indoutos (1 Co. 14:3).
Além disso, devo perguntar como a revelação dos pecados secretos de algum incrédulo nas igrejas de Corinto, de Tessalônica, de Roma, de Laodicéia, e por toda a terra habitada – cobiça, concupiscência, ira, egoísmo – funcionam para deitar os alicerces, de uma vez por todas, da igreja universal de Jesus Cristo? Mesmo assim, a atuação aqui mencionada é um dos propósitos primários do dom profético (1 Co. 14:24-25).
Gaffin acredita que as línguas também são um dom de revelação e, portanto, profético. Se assim fosse, teríamos revelação não-canônica vinda aos cristãos individuais para sua edificação pessoal, que não deveria ser partilhada com a congregação em geral na ausência de um intérprete (1 Co. 14:28). Como se poderia conceber que semelhante revelação particular pudesse contribuir para a fundação, de uma vez por todas, da igreja em geral?
Paulo esperava, em cada ocasião que os cristãos se reunissem para a adoração que, pelo menos potencialmente, “cada um” dos crentes comparecesse com uma “revelação” entre outras coisas, como contribuição ao culto (1 Co. 14:26). Esperava que parte normal da experiência cristã fosse receber dados de revelação ou “impressões” da parte de Deus. É difícil ler suas instruções para o culto público e ainda concluir que considerava que todo o ministério de revelação e, portanto, profético, fazia parte do alicerce fundamental da igreja universal. Deve ter havido milhares e milhares de revelações e expressões verbais proféticas somadas nas centenas de igrejas no decurso dos anos entre o Pentecoste e o encerramento do cânon do NT. Devemos acreditar que essa multidão de pessoas, com um número ainda maior de palavras proféticas, construísse o alicerce, lançando uma vez por todas, na igreja?
Gaffin parece acreditar que, uma vez que os apóstolos e profetas cessaram de funcionar como os que lançavam os alicerces, pararam totalmente de funcionar – como se o único propósito para os apóstolos e profetas fosse lançar os alicerces da igreja. O NT não diz isso em nenhum lugar, e muito menos em Efésios 2:20. O máximo que esse texto diz é que tão logo os apóstolos e profetas deitaram os alicerces de uma vez por todas, cessaram, posteriormente, de funcionar nessa capacidade. Nada, porém, sugere que tenham deixado de funcionar em outras capacidades, e muito menos que tenham cessado totalmente de existir. Certamente é verdade dizer que somente os apóstolos e profetas deitaram os alicerces na igreja, mas isso não significa, nem de perto, que foi essa a única coisa que fizeram.
Resumindo, o retrato oferecido em Atos, 1 Coríntios, Romanos, e 1 Tessalonicenses sobre quem podia profetizar e como a profecia devia ser exercida na vida da igreja, simplesmente não descreve todos os profetas possíveis, dos quais cada um teria participado da fundação, definitiva da igreja. Ali, pelo contrário, Paulo está descrevendo um grupo limitado de profetas que tinham íntima conexão com os apóstolos, em que tanto aqueles quanto estes falavam palavras de qualidade em relação às Escrituras, e essenciais para a fundação da igreja universal.
7. Gaffin levanta objeções contra a possibilidade de revelação pós-canônicas pela razão de que estaríamos “obrigados a prestar atenção e nos submeter” (p.49) a ela da forma como o fazemos com as Escrituras, propriamente dita. À parte do fato de que isso pressupõe erroneamente que as profecias contemporâneas produzem palavras infalíveis da parte de Deus, do mesmo tipo das Escrituras, trata-se de um problema que o próprio cessacionista terá que enfrentar. Como os cristãos tessalonicenses, por exemplo, eram “obrigados a prestar atenção e submeter-se” (lit.: “agarrar-se a”; 1 Ts. 5:21) às palavras proféticas que receberam, não menos do que às Escrituras nas quais se acha essa própria ordem? Segundo parece, Paulo não receava que o modo de eles corresponderem à palavra profética falada subvertesse a autoridade ou a suficiência da revelação escrita (as Escrituras) que ele mesmo estava em vias de enviar-lhes. O fato em pauta é o seguinte: a revelação não-canônica não era inconsistente com a autoridade das Escrituras naqueles tempos, e nem precisa ser agora. Essa declaração torna-se especialmente verdadeira se, conforme argumentei no meu ensaio, a profecia contemporânea não produz, necessariamente, palavras infalíveis da parte de Deus.
Alguém talvez pergunte: “Mas como nós, que vivemos no mundo do cânon fechado, no século XX, devemos corresponder à revelação não-canônica?” A resposta é: “Da mesma forma que os cristãos correspondiam a ela no mundo do cânon aberto, no século I, a saber, por meio de sua avaliação à luz das Escrituras” (que para eles eram emergentes e, portanto, parciais, ao passo que para nós são completas). Semelhante revelação teria para nós, hoje, a mesma autoridade que tinha para eles. Além disso, estamos em condições muito melhores que a igreja primitiva, por termos a forma definitiva do cânon, à luz do qual podemos avaliar as reivindicações à revelação profética. Se, naquele tempo, tinham a capacidade de avaliar a revelação profética (e Paulo acreditava que sim, conforme comprovam suas instruções em 1Co. 14 e 1Ts. 5), logo hoje estamos muito mais capacitados! Se houver alguma diferença enre as duas situações as reivindicações contemporâneas da revelação profética devem ser mais fáceis de ser avaliadas e respondidas que semelhantes reivindicações no século I.
Portanto, já que a revelação não-canônica não era uma ameaça à autoridade final das Escrituras nas suas formas emergentes, deve, menos ainda, postular uma ameaça às Escrituras na sua forma final. Já que os cristãos no século I tinham a obrigação de crer nas Escrituras e obedecer a elas no período do cânon aberto, simultaneamente com a revelação profética não-canônica, não existe motivo para acreditar que a revelação não-canônica no período do cânon fechado na história eclesiástica constituísse, tampouco, um problema.
Em estilo semelhante, Gaffin argumenta que a profecia contemporânea não pode, na realidade, ser avaliada pelas Escrituras, por causa da suposta especificidade daquela. Mas isso, também não constitui problema maior para nós hoje do que teria sido para os cristãos no século I. Estes não avaliaram a revelação profética a despeito da sua especificidade e individualidade? Se foram obedientes às instruções de Paulo, certamente a avaliaram (1Co. 14:29; 1Ts. 5.21,22). Não existe motivo para pensarmos que não podemos fazer o mesmo hoje. A verdade é que estamos mais bem equipados para isso que eles, posto que temos em mãos a forma final da revelação canônica com a qual podemos fazer aquela avaliação.
8. Gaffin acredita que admitir a possibilidade da revelação além das Escrituras “subentende uma certa insuficiência na Palavra revelada, que precisaria ser compensada” (p.54). Devemos, porém, perguntar: “Em que sentido a suficiência das Escrituras é definida?” Certamente, é suficiente para nos fornecer verdades e princípios teológicos que são essenciais para a vida piedosa. O própio de Gaffin, porém, reconhece que “Deus se revela aos indivíduos de vários modos pessoais e altamente íntimos” (p.55). Mas não haveria necessidade de Gaffin afirmar isso caso as Escrituras fossem tão completamente suficientes quanto ele insiste em uma outra parte de sua apresentação. Que Deus acha importante e útil revelar-se a seus filhos de modo íntimo e pessoal testemunha o fato de a suficiência da Bíblia não pretender sugerir que já não precisamos ter notícias diretas de nosso Pai celestial, ou receber orientação específica nas áreas em que a Bíblia nada diz. As Escrituras nunca alega que nos suprem de todas as informações possíveis necessárias para tomar toda decisão concebível. As Escrituras nos mandam, sim, pregar o evangelho a toda criatura, mas não dizem a um missionário principiante em 1996 que Deus deseja seus serviços na Albânia e não na Austrália. O potencial para Deus falar além das Escrituras, quer para orientação, exortação, encorajamento ou convicção, não apresenta nenhuma ameaça para a suficiência que as Escrituras reivindicam para si mesmas.
Tomo a liberdade de citar um exemplo do ministério de Charles Spurgeon. Em certa ocasião, enquanto pregava em Exerter Hall, interrompeu o sermão e apontou seu dedo em determinada direção, declarando: “Jovem, essas luvas que você está usando não foram pagas: você as furtou do seu patrão”. Depois do culto, um jovem obviamente pálido e agitado implorou para falar com ele em particular. Colocou na mesa um par de luvas e disse: “Essa foi a primeira vez que furtei alguma coisa do meu patrão, e nunca o farei de novo. O senhor não vai me denunciar, vai? Minha mãe morreria de desgosto se ouvisse dizer que me tornei ladrão”[3]. Spurgeon não poderia ter descoberto essa informação por meio de sua leitura bíblica. Mas, certamente, não estamos subvertendo a suficiência desta última ao reconhecermos que foi Deus quem “revelou” a ele esse “entendimento”.
No esforço para negar a revelação pós-apostólica, Gaffin assevera (sem fornecer evidências bíblicas) que “a palavra de revelação está vinculada à ação redentora. Quando essa última é consumada, a revelação também cessa” (p.56). Não concordo. Embora possa ser dito que “as Escrituras estão vinculadas ao ato da redenção”, a revelação é muito mais abrangente que o que acabou por ser incluído no cânon. Nada vejo nas Escrituras que me leve a acreditar que Deus ficou mudo depois dos tempos da igreja primitiva. Já que era crucial, em Corinto do século I, que Deus falasse além das Escrituras de tal maneira que os pecados do incrédulos fossem desmascarados levando-os ao arrependimento e à vida eterna, por que semelhantes mensagens seriam menos cruciais no século XXI (v. 1Co. 14:24,25)?
9. O debate sobre 1 Coríntios 13 continua. O espaço alocado não permite dizer muita coisa, e duvido que possa melhorar o que outros já disseram. Note-se, porém, que Gaffin rejeita por não ser “exegeticamente crível” (p.57; nota de rodapé 81) a sugestão de que o “perfeito” no versículo 10 tenha em vista a completude do cânon do NT ou alguma outra situação antes da Parúsia. Acredita que Paulo nem sequer esteja tratando, nessa passagem, da questão da continuação dos dons; portanto, permanece em aberto.
Gostaria de dizer, simplesmente, que se trata de uma questão que talvez o contexto mais amplo possa contribuir grandemente para solucionar. Pois, é a natureza, a função, e o valor comparativo dos dons espirituais que ocupam a atenção de Paulo em 1 Coríntios 12 e 14. Certamente, não seria um absurdo, pois, sugerir que em 1 Coríntios 13 ele continua a ter em vista a perpetuidade de semelhantes dons ao contrastá-los com o valor eterno do amor cristão.
10. Finalmente, Gaffin fica surpreso com a dificuldade de Gordon Fee em distinguir entre a palavra de sabedoria e a palavra de conhecimento, bem como pela aparente indiferença desse último no tocante à natureza do dom de línguas nos tempos atuais. Em primeiro lugar, não posso prestar contas pela incerteza de Fee, mas não estou disposto a reconhecer que não podemos saber o que era a palavra de sabedoria, a palavra de conhecimento, e o falar em línguas naquela época (e agora). Em segundo lugar, por certo Gaffin não pretende sugerir que a falta de clareza seja um argumento favorável à cessação. Se um dos critérios para acreditar em um princípio ou prática e abraçá-lo fosse a total isenção de ambiguidade, quem sabe quantas outras coisas na Bíblia (segundo a conclusão que seríamos obrigados a tirar) não tinham o propósito divino de manter a validade além da morte dos apóstolos!
Fico imaginando se os coríntios (e especialmente outras igrejas no século I que receberam ainda menos instrução explícita) talvez tivessem se deparando com o mesmo problema. Gaffin não questiona a validade de semelhantes dons naquela época, porém não possuíam mais revelação especial na distinção entre os dons do que nós. Já que semelhante falta de especificidade não prejudicava o exercício daqueles dons no século I, não existe motivo para pensar que prejudicaria no século XXI.
[3] Autobiography, vol.2, The Full Harvest, 1860-1892, Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1973, p.60.
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Extraído de:
GRUDEM, Wayne (org.). Cessaram os dons espirituais? São Paulo: Editora Vida, 2003, p.82-89.
6. A preocupação principal de Gaffin diz respeito aos chamados dons de revelação. Suas considerações focalizam Efésios 2:11-21 (especialmente v.20) e o ministério fundamental dos apóstolos e profetas. Diz que os apóstolos e profetas pertencem ao período fundamental, e não ao da superestrutura. Mas esse conceito desconsidera os versículos 21 e 22, em que Paulo se refere à superestrutura como ainda sendo edificada, por assim dizer, enquanto Paulo fala/escreve (observe o uso consistente do tempo presente nos v.21,22). Em outras palavras, os apóstolos e profetas no versículo 20, entre os quais Paulo, também estavam contribuindo para a superestrutura – simultaneamente com a obra de lançar os alicerces sobre os quais esta estava sendo edificada. Devemos tomar o cuidado de não forçar a metáfora para além do que Paulo pretendia com ela.
Empregando uma analogia, uma vez que um homem estabelece uma companhia, redige seus estatutos sociais, contrata seus funcionários, e faz todo o trabalho essencial para deitar os alicerces para sua futura operação e produção, ele não desaparece de cena ou deixa de servir à companhia em outras capacidades. Conforme indica Deere: “O fundador de uma companhia ou sociedade anônima sempre será incomparável no sentido de ter sido o fundador, mas isso não significa que a companhia não pode ter diretores ou presidentes no futuro”[2].
Segundo a opinião de Gaffin, todos os profetas do NT operaram como fundadores. Nada existe, porém, para sugerir que “os profetas” em Efésios 2:20 sejam uma referência exaustiva a todos os profetas possíveis na igreja. Por que devemos concluir que o único tipo de atividade profética deve ser “fundamental” quanto à sua natureza, especialmente à luz do que o NT diz a respeito da extensão e efeito do ministério profético? Simplesmente não é possível acreditar que todas as expressões verbais proféticas fizessem parte do alicerce da igreja, lançado de uma vez por todas. O próprio NT não declara isso em nenhum lugar. Além disso, nem todos quantos ministravam profeticamente eram apóstolos. Portanto, o fim do cargo apostólico não é argumento a favor da cessação do dom de profecia.
Sugerir que Efésios 2:20 objetiva todos os profetas possíveis ativos na igreja primitiva não condiz com tudo quanto lemos a respeito desse dom no restante do NT. Semelhante sugestão exigiria que acreditássemos que todos os que profetizavam no dia do Pentecoste e nos anos que se seguiram, “filhos, filhas jovens, velhos, servos e servas”, estavam deitando os alicerces da igreja. O cessacionista pede que acreditemos na promessa de Joel 2, longamente aguardada, do derramamento sem precedentes do Espírito Santo “sobre todos os povos” (At.2:17), com sua atividade de revelação resultante de sonhos, visões e profecia, fosse cumprida somente em algumas poucas pessoas, cujos nos funcionaram de modo exclusivamente fundamental, iniciatório e, portanto, de forma temporária! Essa teoria explica adequadamente o texto? A experiência reveladora e carismática do Espírito, predita por Joel, e citada por Pedro, dificilmente pode ser considerada completamente cumprida por uma pequena minoria de crentes durante o decurso de meros sessenta anos, e apenas no século I. Parece, pelo contrário, que Joel e Atos 2, juntos, descrevem a experiência cristã normativa para a totalidade da comunidade cristã na totalidade da era da aliança, denominada “os últimos dias”.
O cessacionismo também gostaria que acreditássemos que um grupo de discípulos anônimos em Éfeso (At. 19:1-7), que profetizaram quando se converteram (e notemos que nenhum deles voltou a ser mencionado nos registros, em nenhuma outra ocasião), assim fizeram com o propósito de deitarem os alicerces da igreja. Forçar as evidências, também, é pensar que as quatro filhas de Filipe faziam parte da fundação, de uma vez por todas, da igreja (21:9).
Segundo a tese de Gaffin, toda a atividade profética é atividade de deitar os alicerces. Mas se assim fosse, Paulo não teria falado da profecia como um dom outorgado a pessoas comuns “visando o bem comum” do corpo de Cristo (1 Co. 12:7-10)? Devemos acreditar que Paulo exortou todos os crentes, em todas as igrejas, a buscar com dedicação exercer significância fundamental para a igreja universal (1 Co.14:1, 39)? Pelo contrário, a profecia deve ser desejada porque seu propósito é comunicar revelação da parte de Deus que “encorajará” os desencorajados, “consolará” os desconsolados, e “fortalecerá” os fracos e indoutos (1 Co. 14:3).
Além disso, devo perguntar como a revelação dos pecados secretos de algum incrédulo nas igrejas de Corinto, de Tessalônica, de Roma, de Laodicéia, e por toda a terra habitada – cobiça, concupiscência, ira, egoísmo – funcionam para deitar os alicerces, de uma vez por todas, da igreja universal de Jesus Cristo? Mesmo assim, a atuação aqui mencionada é um dos propósitos primários do dom profético (1 Co. 14:24-25).
Gaffin acredita que as línguas também são um dom de revelação e, portanto, profético. Se assim fosse, teríamos revelação não-canônica vinda aos cristãos individuais para sua edificação pessoal, que não deveria ser partilhada com a congregação em geral na ausência de um intérprete (1 Co. 14:28). Como se poderia conceber que semelhante revelação particular pudesse contribuir para a fundação, de uma vez por todas, da igreja em geral?
Paulo esperava, em cada ocasião que os cristãos se reunissem para a adoração que, pelo menos potencialmente, “cada um” dos crentes comparecesse com uma “revelação” entre outras coisas, como contribuição ao culto (1 Co. 14:26). Esperava que parte normal da experiência cristã fosse receber dados de revelação ou “impressões” da parte de Deus. É difícil ler suas instruções para o culto público e ainda concluir que considerava que todo o ministério de revelação e, portanto, profético, fazia parte do alicerce fundamental da igreja universal. Deve ter havido milhares e milhares de revelações e expressões verbais proféticas somadas nas centenas de igrejas no decurso dos anos entre o Pentecoste e o encerramento do cânon do NT. Devemos acreditar que essa multidão de pessoas, com um número ainda maior de palavras proféticas, construísse o alicerce, lançando uma vez por todas, na igreja?
Gaffin parece acreditar que, uma vez que os apóstolos e profetas cessaram de funcionar como os que lançavam os alicerces, pararam totalmente de funcionar – como se o único propósito para os apóstolos e profetas fosse lançar os alicerces da igreja. O NT não diz isso em nenhum lugar, e muito menos em Efésios 2:20. O máximo que esse texto diz é que tão logo os apóstolos e profetas deitaram os alicerces de uma vez por todas, cessaram, posteriormente, de funcionar nessa capacidade. Nada, porém, sugere que tenham deixado de funcionar em outras capacidades, e muito menos que tenham cessado totalmente de existir. Certamente é verdade dizer que somente os apóstolos e profetas deitaram os alicerces na igreja, mas isso não significa, nem de perto, que foi essa a única coisa que fizeram.
Resumindo, o retrato oferecido em Atos, 1 Coríntios, Romanos, e 1 Tessalonicenses sobre quem podia profetizar e como a profecia devia ser exercida na vida da igreja, simplesmente não descreve todos os profetas possíveis, dos quais cada um teria participado da fundação, definitiva da igreja. Ali, pelo contrário, Paulo está descrevendo um grupo limitado de profetas que tinham íntima conexão com os apóstolos, em que tanto aqueles quanto estes falavam palavras de qualidade em relação às Escrituras, e essenciais para a fundação da igreja universal.
7. Gaffin levanta objeções contra a possibilidade de revelação pós-canônicas pela razão de que estaríamos “obrigados a prestar atenção e nos submeter” (p.49) a ela da forma como o fazemos com as Escrituras, propriamente dita. À parte do fato de que isso pressupõe erroneamente que as profecias contemporâneas produzem palavras infalíveis da parte de Deus, do mesmo tipo das Escrituras, trata-se de um problema que o próprio cessacionista terá que enfrentar. Como os cristãos tessalonicenses, por exemplo, eram “obrigados a prestar atenção e submeter-se” (lit.: “agarrar-se a”; 1 Ts. 5:21) às palavras proféticas que receberam, não menos do que às Escrituras nas quais se acha essa própria ordem? Segundo parece, Paulo não receava que o modo de eles corresponderem à palavra profética falada subvertesse a autoridade ou a suficiência da revelação escrita (as Escrituras) que ele mesmo estava em vias de enviar-lhes. O fato em pauta é o seguinte: a revelação não-canônica não era inconsistente com a autoridade das Escrituras naqueles tempos, e nem precisa ser agora. Essa declaração torna-se especialmente verdadeira se, conforme argumentei no meu ensaio, a profecia contemporânea não produz, necessariamente, palavras infalíveis da parte de Deus.
Alguém talvez pergunte: “Mas como nós, que vivemos no mundo do cânon fechado, no século XX, devemos corresponder à revelação não-canônica?” A resposta é: “Da mesma forma que os cristãos correspondiam a ela no mundo do cânon aberto, no século I, a saber, por meio de sua avaliação à luz das Escrituras” (que para eles eram emergentes e, portanto, parciais, ao passo que para nós são completas). Semelhante revelação teria para nós, hoje, a mesma autoridade que tinha para eles. Além disso, estamos em condições muito melhores que a igreja primitiva, por termos a forma definitiva do cânon, à luz do qual podemos avaliar as reivindicações à revelação profética. Se, naquele tempo, tinham a capacidade de avaliar a revelação profética (e Paulo acreditava que sim, conforme comprovam suas instruções em 1Co. 14 e 1Ts. 5), logo hoje estamos muito mais capacitados! Se houver alguma diferença enre as duas situações as reivindicações contemporâneas da revelação profética devem ser mais fáceis de ser avaliadas e respondidas que semelhantes reivindicações no século I.
Portanto, já que a revelação não-canônica não era uma ameaça à autoridade final das Escrituras nas suas formas emergentes, deve, menos ainda, postular uma ameaça às Escrituras na sua forma final. Já que os cristãos no século I tinham a obrigação de crer nas Escrituras e obedecer a elas no período do cânon aberto, simultaneamente com a revelação profética não-canônica, não existe motivo para acreditar que a revelação não-canônica no período do cânon fechado na história eclesiástica constituísse, tampouco, um problema.
Em estilo semelhante, Gaffin argumenta que a profecia contemporânea não pode, na realidade, ser avaliada pelas Escrituras, por causa da suposta especificidade daquela. Mas isso, também não constitui problema maior para nós hoje do que teria sido para os cristãos no século I. Estes não avaliaram a revelação profética a despeito da sua especificidade e individualidade? Se foram obedientes às instruções de Paulo, certamente a avaliaram (1Co. 14:29; 1Ts. 5.21,22). Não existe motivo para pensarmos que não podemos fazer o mesmo hoje. A verdade é que estamos mais bem equipados para isso que eles, posto que temos em mãos a forma final da revelação canônica com a qual podemos fazer aquela avaliação.
8. Gaffin acredita que admitir a possibilidade da revelação além das Escrituras “subentende uma certa insuficiência na Palavra revelada, que precisaria ser compensada” (p.54). Devemos, porém, perguntar: “Em que sentido a suficiência das Escrituras é definida?” Certamente, é suficiente para nos fornecer verdades e princípios teológicos que são essenciais para a vida piedosa. O própio de Gaffin, porém, reconhece que “Deus se revela aos indivíduos de vários modos pessoais e altamente íntimos” (p.55). Mas não haveria necessidade de Gaffin afirmar isso caso as Escrituras fossem tão completamente suficientes quanto ele insiste em uma outra parte de sua apresentação. Que Deus acha importante e útil revelar-se a seus filhos de modo íntimo e pessoal testemunha o fato de a suficiência da Bíblia não pretender sugerir que já não precisamos ter notícias diretas de nosso Pai celestial, ou receber orientação específica nas áreas em que a Bíblia nada diz. As Escrituras nunca alega que nos suprem de todas as informações possíveis necessárias para tomar toda decisão concebível. As Escrituras nos mandam, sim, pregar o evangelho a toda criatura, mas não dizem a um missionário principiante em 1996 que Deus deseja seus serviços na Albânia e não na Austrália. O potencial para Deus falar além das Escrituras, quer para orientação, exortação, encorajamento ou convicção, não apresenta nenhuma ameaça para a suficiência que as Escrituras reivindicam para si mesmas.
Tomo a liberdade de citar um exemplo do ministério de Charles Spurgeon. Em certa ocasião, enquanto pregava em Exerter Hall, interrompeu o sermão e apontou seu dedo em determinada direção, declarando: “Jovem, essas luvas que você está usando não foram pagas: você as furtou do seu patrão”. Depois do culto, um jovem obviamente pálido e agitado implorou para falar com ele em particular. Colocou na mesa um par de luvas e disse: “Essa foi a primeira vez que furtei alguma coisa do meu patrão, e nunca o farei de novo. O senhor não vai me denunciar, vai? Minha mãe morreria de desgosto se ouvisse dizer que me tornei ladrão”[3]. Spurgeon não poderia ter descoberto essa informação por meio de sua leitura bíblica. Mas, certamente, não estamos subvertendo a suficiência desta última ao reconhecermos que foi Deus quem “revelou” a ele esse “entendimento”.
No esforço para negar a revelação pós-apostólica, Gaffin assevera (sem fornecer evidências bíblicas) que “a palavra de revelação está vinculada à ação redentora. Quando essa última é consumada, a revelação também cessa” (p.56). Não concordo. Embora possa ser dito que “as Escrituras estão vinculadas ao ato da redenção”, a revelação é muito mais abrangente que o que acabou por ser incluído no cânon. Nada vejo nas Escrituras que me leve a acreditar que Deus ficou mudo depois dos tempos da igreja primitiva. Já que era crucial, em Corinto do século I, que Deus falasse além das Escrituras de tal maneira que os pecados do incrédulos fossem desmascarados levando-os ao arrependimento e à vida eterna, por que semelhantes mensagens seriam menos cruciais no século XXI (v. 1Co. 14:24,25)?
9. O debate sobre 1 Coríntios 13 continua. O espaço alocado não permite dizer muita coisa, e duvido que possa melhorar o que outros já disseram. Note-se, porém, que Gaffin rejeita por não ser “exegeticamente crível” (p.57; nota de rodapé 81) a sugestão de que o “perfeito” no versículo 10 tenha em vista a completude do cânon do NT ou alguma outra situação antes da Parúsia. Acredita que Paulo nem sequer esteja tratando, nessa passagem, da questão da continuação dos dons; portanto, permanece em aberto.
Gostaria de dizer, simplesmente, que se trata de uma questão que talvez o contexto mais amplo possa contribuir grandemente para solucionar. Pois, é a natureza, a função, e o valor comparativo dos dons espirituais que ocupam a atenção de Paulo em 1 Coríntios 12 e 14. Certamente, não seria um absurdo, pois, sugerir que em 1 Coríntios 13 ele continua a ter em vista a perpetuidade de semelhantes dons ao contrastá-los com o valor eterno do amor cristão.
10. Finalmente, Gaffin fica surpreso com a dificuldade de Gordon Fee em distinguir entre a palavra de sabedoria e a palavra de conhecimento, bem como pela aparente indiferença desse último no tocante à natureza do dom de línguas nos tempos atuais. Em primeiro lugar, não posso prestar contas pela incerteza de Fee, mas não estou disposto a reconhecer que não podemos saber o que era a palavra de sabedoria, a palavra de conhecimento, e o falar em línguas naquela época (e agora). Em segundo lugar, por certo Gaffin não pretende sugerir que a falta de clareza seja um argumento favorável à cessação. Se um dos critérios para acreditar em um princípio ou prática e abraçá-lo fosse a total isenção de ambiguidade, quem sabe quantas outras coisas na Bíblia (segundo a conclusão que seríamos obrigados a tirar) não tinham o propósito divino de manter a validade além da morte dos apóstolos!
Fico imaginando se os coríntios (e especialmente outras igrejas no século I que receberam ainda menos instrução explícita) talvez tivessem se deparando com o mesmo problema. Gaffin não questiona a validade de semelhantes dons naquela época, porém não possuíam mais revelação especial na distinção entre os dons do que nós. Já que semelhante falta de especificidade não prejudicava o exercício daqueles dons no século I, não existe motivo para pensar que prejudicaria no século XXI.
Notas:
[2] Ibid, p.248.[3] Autobiography, vol.2, The Full Harvest, 1860-1892, Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1973, p.60.
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Extraído de:
GRUDEM, Wayne (org.). Cessaram os dons espirituais? São Paulo: Editora Vida, 2003, p.82-89.
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