segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Nº 39



DONS REVELACIONAIS NÃO SÃO UNICAMENTE FUNDACIONAIS
por Don Codling

O problema em vincular os dons revelacionais a um papel fundacional do domínio de Cristo é que isso aponta apenas para uma verdade parcial. Há pelo menos quatro fatores demonstrando de forma negativa que estes dons, como um conjunto, não podem ser limitados a um período de fundação. Em primeiro lugar, sua universalidade na igreja não se encaixa com uma função puramente fundacional. Em segundo, as limitações impostas sobre seu exercício são incompatíveis com o ponto de vista deles como fundacionais. Em terceiro lugar, mesmo os trechos bíblicos usados para mostrar a natureza fundacional dos dons não fazem qualquer alegação de que esta é a sua única função. Por último, não há evidências convincentes de que estes dons simplesmente serviram como um substituto necessário para o Novo Testamento até este ser concluído. Uma vez que estas considerações negativas têm sido desenvolvidas, será possível prosseguir a uma declaração positiva do lugar que os dons realmente ocupam em relação ao reino de nosso Senhor.

Os dons são universais na igreja

O primeiro comentário negativo sobre a teoria de que os dons foram puramente fundacionais ergue-se fora da universalidade da distribuição destes dons na igreja do Novo Testamento. Na exegese das passagens de Atos que descrevem as várias recepções do Espírito, um dos pontos observados foi o de que em cada incidente toda a comunidade recebeu o Espírito Santo e seus dons[1]. É evidente a partir de Atos 2:38 que Pedro antecipou que aqueles convertidos em Pentecostes também receberiam o Espírito. As perguntas de Paulo para os discípulos de Éfeso sugerem que ele pensava ser absolutamente normal que crentes deveriam receber o Espírito com o acompanhamento de dons. Foram feitas várias referências em outras passagens consideradas, demonstrando ter ele confiadamente presumido que os leitores das cartas apostólicas estariam familiarizados com as manifestações de poder do Espírito na manifestação daqueles dons. Em 1Coríntios 12-14, é muito claro que a maioria dos membros da Igreja de Corinto, senão todos, recebeu dons espirituais, e muitos deles possuíam os chamados dons de revelação. Neste sentido, será que estamos tentando abranger toda a geração apostólica da igreja na obra de fundação do reino de Cristo? Eu penso ser difícil incluir toda a primeira geração da igreja na obra de fundação.

O uso dos dons não pode ser considerado como fundacional no sentido de ser parte da vitória de Cristo sobre Satanás, porque aquela vitória já foi ganha e o exercício dos dons pode ser apenas parte da aplicação do triunfo de Cristo. Nem pode toda a geração apostólica ser parte direta do testemunho do Senhor. Se assim fosse, referências que declaram que a igreja foi construída sobre o fundamento de um grupo restrito e limitado, como os apóstolos e os profetas em Efésios 2:20, seriam absolutamente inúteis. Mas vamos chamar o limitado grupo que a Bíblia descreve como grupo fundacional, de círculo apostólico. Então, se os dons de revelação, em geral, eram apenas fundacionais, o seu papel só poderia ter sido para autenticar o testemunho do círculo apostólico. Mas que relação observável estava lá entre este grupo limitado e o amplo exercício dos dons? É passada a credibilidade de que os Apóstolos estavam envolvidos na transmissão de dons espirituais para praticamente todo cristão na geração apostólica. Seria possível que os dons fossem todos conferidos por intermédio dos apóstolos e de um círculo restrito de homens associados com eles?

O problema é que enquanto vários grupos (como profetas, Ef. 2;20; e anciãos, At. 15:2) foram associados com os apóstolos em diferentes capacidades, não há indicação bíblica de um grupo em particular que tenha sido utilizado por Deus na concessão de dons espirituais. Com efeito, a evidência bíblica não mostra nenhum padrão particular, muito embora seja verdade que em diversas ocasiões os apóstolos funcionaram como agentes de Deus com este propósito. Por outro lado, também é verdade que em diferentes pontos no Antigo Testamento os dons foram recebidos por meio do ministério de um profeta (Dt. 34:9, 1Rs. 19:16). Às vezes outros homens foram agentes na concessão do Espírito mediante a imposição das mãos, como ilustrado em Atos 9:17-18. Ainda em outras oportunidades, não havia nenhum agente humano envolvido (Êx. 3:1-4; Is. 6:17; At. 2:1-4; 10:44), portanto, o único padrão claro é que Deus concedeu seus dons para aqueles a quem escolheu, alguns deles espalhados no Antigo Testamento, bem como por toda a Igreja do Novo Testamento. Em sua sabedoria, o Senhor usou agentes quando se agradou em fazê-lo, mas não em todos os momentos. Pode ser alegado que no Novo Testamento o padrão exigido era a imposição de mãos, como o Pentecostes e os eventos na casa de Cornélio marcando as instâncias iniciais excepcionais para judeus e gentios. No entanto, isso poderia ser aceitável se não fosse a evidência do Antigo Testamento demonstrando que, muito antes do Pentecostes, os dons do Espírito foram conferidos com ou sem a imposição de mãos. Assim, não há nenhuma razão discernível para dizer que a nova aliança implicou uma nova mudança nesta prática.

Uma outra possível conexão do exercício dos dons de revelação com o círculo apostólico seria a limitação do exercício dos dons aos tempos e lugares onde o testemunho do círculo apostólico estava sendo exercido. No entanto, a universalidade do exercício dos dons (em toda a igreja e, de acordo com o padrão descrito em 1Coríntios pelo menos, sempre que a igreja se reunia para o culto) confronta firmemente contra essa possibilidade. Fica então uma pergunta: como é que a média da segunda geração de cristãos em Corinto no tempo de Paulo se diferenciaria do cristão de hoje na sua relação com o reino de Cristo? Se o seu trabalho foi fundamental, porque o trabalho dos cristãos de hoje não seria?

A universalidade dos dons estabelece então um dilema: ou os dons não são exclusivamente fundacionais, ou não há qualquer base para declarar que a obra da fundação foi concluída. Em qualquer um dos casos, o argumento para a cessação dos dons perde força

Limitações estritas são colocadas no uso de dons de revelação

O segundo fator que desafia a teoria de que os dons de revelação são puramente fundacionais é a limitação colocada sobre a sua utilização. Contudo, o fato de se definir uma limitação não mostra conclusivamente que os dons não podem ser restringidos à obra da fundação, porque é certamente possível que um aspecto da fundação pudesse limitar outro aspecto. É importante destacar essa questão, sobretudo pelo fato de que normalmente se pensa na fundação como a estrutura básica que coloca limitações sobre tudo o que se segue.

As restrições à utilização de alguns dos dons (1Co. 14:26ss.) levanta questões sobre a ideia de que estes dons foram sendo exercidos como parte da obra de fundação e edificação da igreja. A revelação fundacional deve estabelecer um adequado padrão litúrgico, mas Paulo teve de escrever aos crentes de Corinto visando corrigir padrões errados de culto que foram sendo estabelecidos através do uso de dons de revelação. Não mais do que dois ou três profetas estariam falando nas reuniões (1Co. 14:29), bem como apenas dois ou três poderiam falar em línguas, mas somente com a operação de outro dom vinculado, o de interpretação de línguas. O fundamento que estava sendo posto antes de Paulo escrever aos coríntios deve ter sido insatisfatório. Isto é muito grave para toda a teoria em questão.

A questão não é simplesmente que pessoas dotadas com dons erraram. Isso por si só não levanta problemas. Mas se o seu erro está em sua obra fundacional passa a ser um problema gravíssimo. Pedro cometeu um erro em Antioquia (Gl. 2:11ss.), mas isso não é um problema, porquanto sua ação naquele tempo não fazia parte da fundação do Reino, embora tenha motivado uma santa reação de Paulo. No entanto, se Pedro tivesse cometido um erro na escrita de suas epístolas, certamente teria sido uma questão bastante séria.

Em Corinto, os cristãos estavam errando no exercício dos dons de revelação e ao corrigir-lhes Paulo não negou que os dons exercidos eram verdadeiramente espirituais. Portanto, se naquele contexto apostólico cada exercício dos dons de revelação era fundacional haveria conclusivamente uma falha na fundação em Corinto. Mas se a fundação foi inconsistente lá, talvez também tenha sido noutros locais Uma vez se admitindo que a fundação pode ser imperfeita, é difícil evitar a conclusão dos teólogos liberais de que a Bíblia também seja.

Ao escrever para corrigir os coríntios, Paulo fez uma distinção muito clara entre a mensagem apostólica e as Escrituras por um lado, que foram inegavelmente fundacionais, e os dons revelacionais, de outro. Com efeito, em nenhum lugar Paulo ou qualquer outro apóstolo disse às pessoas para limitar a sua leitura das Escrituras. Na verdade os judeus de Beréia foram elogiados por provar pelas Escrituras tudo quanto o próprio Paulo disse (At. 17:11). Os dons de revelação de Corinto têm um status secundário em comparação com a mensagem apostólica e a Bíblia. Portanto, o uso dos dons é regulado através do ensino apostólico e das Escrituras, enquanto que o uso da Bíblia, por outro lado, não tem restrições. O testemunho prévio dos apóstolos e das Escrituras formam o padrão pelo qual a igreja foi construída. O testemunho dos apóstolos culminando na Bíblia é que é fundamental. Assim sendo, embora seja possível.




Notas:
[1] BRUNER, Frederick Dale. A Theology of the Holy Spirit. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1970, p.159.

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Extraído de:
CODLING, DON. Sola Scriptura e os Dons de Revelação. Natal, RN: Editora Carisma, 2016, p.143-148.

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