por Alister E. McGrath
Um dos mais importantes eventos na história primitiva da igreja foi o acordo em todo o Império Romano, de leste a oeste, sobre o Credo Niceno. Esse documento pretendia trazer estabilidade doutrinária para a igreja em um período de considerável importância em sua história. Parte do texto escrito desse acordo fazia referência ao Espírito Santo como “procedendo do Pai”. Entretanto, a igreja ocidental, até o século IX, alterou, em sua prática, essa expressão, falando do Espírito Santo como “procedendo do Pai e do Filho”. O termo latino filioque, que literalmente significa “e do Filho”, desde essa época refere-se a essa adição, agora normativa na igreja ocidental e na teologia que ela professa. Essa ideia de uma “dupla origem” do Espírito Santo foi fonte de intensa irritação em meio aos escritores gregos: não apenas levantou sérias dificuldades teológicas para eles, como também envolveu a manipulação do texto supostamente inviolável do credo. Muitos estudiosos veem nesse ressentimento uma contribuição para o cisma, por volta de 1054, entre as igrejas ocidental e oriental.
O debate filioque é relevante tanto como uma questão teológica em si mesmo quanto como um tópico de alguma importância nas relações contemporâneas entre a igreja ocidental e oriental. Portanto, propomo-nos explorar esse assunto detalhadamente. A questão básica é se podemos dizer que o Espírito Santo procede somente do Pai ou do Pai e do Filho. A primeira posição é associada à igreja oriental, que recebe maior ênfase e escritos dos pais capadócios; a segunda posição, está associada à igreja ocidental, sendo abordada por Agostinho de Hipona, em seu tratado Sobre a Trindade.
Os escritores patrísticos gregos insistiam que havia apenas uma origem do ser na Trindade. Somente o Pai era a única e suprema causa de todas as coisas, inclusive do Filho e do Espírito, na Trindade. O Filho e o Espírito derivavam do Pai, porém, de distintas maneiras. Na procura de termos apropriados para expressar esse relacionamento, os teólogos, eventualmente, fixaram-se em duas imagens bastante distintas: O Filho é o gerado do Pai ao passo que o Espírito procede do Pai. Esses dois termos pretendiam expressar a ideia de que tanto o Filho como o Espírito emanavam do Pai, porém, de distintas maneiras. O vocabulário é impreciso, refletindo o fato de que as palavras gregas envolvidas (gennesis e ekporeusis) são difíceis de traduzir para as línguas modernas.
Com a finalidade de auxiliar o entendimento desse completo processo, os pais gregos usaram duas imagens. O Pai pronuncia sua palavra; e ao mesmo tempo em que emite essa palavra, ele sopra com a finalidade de fazê-la conhecida e acolhida. A imagem usada aqui, que é fortemente fundamentada na tradição bíblica, é a do Filho como a Palavra de Deus e a do Espírito como o Sopro de Deus. Um óbvia questão é levantada aqui: por que deveriam os pais capadócios, e ouros escritores gregos, gastar tempo e esforço em distinguir o Filho e o Espírito dessa maneira? A resposta é importante. Uma falha em distinguir os modos por meio dos quais o Filho e o Espírito são derivados de um único e mesmo Pai levaria à hipótese de Deus ter dois filhos, o que teria levantado problemas insuperáveis.
Nesse contexto, é impensável que o Espírito Santo deveria proceder tanto do Pai como do Filho. Por quê? Porque isso comprometeria totalmente o princípio do Pai como a única origem e fonte de toda a divindade. Isso significaria a afirmação de que havia duas fontes de divindade em uma única Trindade, com todas as contradições e tensões internas que isso geraria. Se o Filho compartilhasse do dom exclusivo do Pai, como fonte de toda divindade, esse dom deixaria de ser exclusivo. Por essa razão, a igreja grega considerava a ideia ocidental de uma “dupla origem” do Espírito como algo que se aproximava de uma total incredulidade.
A tradição grega, entretanto, não era totalmente unânime nesse ponto. Cirilo de Alexandria não hesitava ao falar do Espírito coo “pertencendo ao Filho” e ideias correlatas desenvolviam-se rapidamente na igreja ocidental. Antigos escritores cristãos ocidentais eram deliberadamente vagos sobre o preciso papel do Espírito Santo na Trindade. Hilário de Poitiers, em seu tratado Sobre a Trindade, contentou-se com uma declaração de que não “diria nada sobre o Espírito Santo [de Deus] exceto que ele era Espírito [de Deus]”. Essa atitude vaga acreditava somente na completa divindade do Pai e do Filho. Hilário, entretanto, em outras passagens do mesmo tratado, deixa claro que distinguia o Novo Testamento apontar para o Espírito como procedente tanto do Pai como do Filho, em vez de somente do Pai.
Esse entendimento de que o Espírito teve sua origem no Pai e no Filho foi desenvolvendo-se e recebeu sua forma clássica em Agostinho de Hipona. Agostinho de Hipona, provavelmente partindo da posição sugerida por Hilário, argumentava que o Espírito devia ser entendido como oriundo do Filho. João 20:22, era um de seus textos essenciais, o qual relata ter o Cristo ressuscitado, soprado sobre seus discípulos e dito: “Recebei o Espírito Santo”. Agostinho de Hipona, em sua obra Sobre a Trindade, explica isso da seguinte maneira:
Ao fazer essa declaração, Agostinho de Hipona penso estar resumindo um consenso tanto para a igreja ocidental como para a, oriental. Infelizmente, seu conhecimento do grego não pareceu ter sido bom o suficiente para perceber que os escritores capadócios, de fala grega, adotavam uma posição.
Portanto, o que Agostinho de Hipona pensava estar fazendo ao entender a atribuição do Espírito Santo dessa maneira? A resposta encontra-se em seu entendimento diferenciado do Espírito Santo como o “elo de amor” entre o Pai e o Filho. Agostinho de Hipona desenvolveu a ideia de relação na Trindade, argumentando que suas pessoas são definidas por suas mútuas relações. Deve-se, portanto, ver o Espírito como a relação de amor e de comunhão entre o Pai e o Filho. Agostinho de Hipona acreditava ser essa relação fundamental para a apresentação, no quarto evangelho, da unidade de vontade e propósito do Pai e do Filho.
Podemos resumir as distinções essenciais entre as duas abordagens da seguinte maneira.
1. A intenção grega era resguardar a exclusiva posição do Pai como a única fonte de divindade. Pelo fato de que tanto o Filho como o Espírito derivam-se dele, embora de maneiras distintas, mas igualmente válidas, suas origens divinas estavam garantidas. Para os gregos, a abordagem latina parecia introduzir duas fontes distintas de divindade na Trindade e enfraquecer a distinção vital entre o Filho e o Espírito. O Filho e o Espírito devem ser entendidos como possuindo atribuições distintas, porém, complementares, enquanto que a tradição ocidental vê o Espírito como o Espírito de Cristo. De fato, um grande número de escritores modernos ligados à tradição oriental, como o escritor russo Vladimir Lossky, criticaram a abordagem ocidental. Lossky, em seu ensaio Processão do Espírito Santo, argumenta que a abordagem ocidental inevitavelmente despersonaliza o Espírito, levando a uma ênfase inadequada sobre a obra e a pessoa de Cristo, e reduz a Trindade a um princípio impessoal.
2. A intenção latina era assegurar que o Filho e o Espírito fossem adequadamente diferenciados um do outro e, ao mesmo tempo, demonstrar que mantinham um mútuo relacionamento. A forte abordagem relacional para a ideia de “pessoa” adotada tornou inevitável que o Espírito fosse tratado dessa maneira. Sensíveis em relação à posição grega, os antigos escritores latinos enfatizaram que não consideravam sua abordagem como pressuposto de duas fontes de divindade na Trindade. Isso ficou particularmente evidente no Décimo Primeiro Concílio de Toledo, ao qual já fizemos referência neste capítulo.
Ideias similares foram afirmadas por concílios posteriores. Dessa forma, o Concílio de Lion (1274) declarou que “o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, contudo, não como se tivesse duas origens, mas apenas uma única origem”. Entretanto, apesar dessa explicações, a doutrina permanece como uma fonte de discussão entre cristãos ocidentais e orientais, que parece pouco provável de ser removida em um futuro próximo.
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MCGRATH, Alister E. Teologia: sistemática, histórica e filosófica. Uma introdução à teologia cristã. São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p.395-398.
O debate filioque é relevante tanto como uma questão teológica em si mesmo quanto como um tópico de alguma importância nas relações contemporâneas entre a igreja ocidental e oriental. Portanto, propomo-nos explorar esse assunto detalhadamente. A questão básica é se podemos dizer que o Espírito Santo procede somente do Pai ou do Pai e do Filho. A primeira posição é associada à igreja oriental, que recebe maior ênfase e escritos dos pais capadócios; a segunda posição, está associada à igreja ocidental, sendo abordada por Agostinho de Hipona, em seu tratado Sobre a Trindade.
Os escritores patrísticos gregos insistiam que havia apenas uma origem do ser na Trindade. Somente o Pai era a única e suprema causa de todas as coisas, inclusive do Filho e do Espírito, na Trindade. O Filho e o Espírito derivavam do Pai, porém, de distintas maneiras. Na procura de termos apropriados para expressar esse relacionamento, os teólogos, eventualmente, fixaram-se em duas imagens bastante distintas: O Filho é o gerado do Pai ao passo que o Espírito procede do Pai. Esses dois termos pretendiam expressar a ideia de que tanto o Filho como o Espírito emanavam do Pai, porém, de distintas maneiras. O vocabulário é impreciso, refletindo o fato de que as palavras gregas envolvidas (gennesis e ekporeusis) são difíceis de traduzir para as línguas modernas.
Com a finalidade de auxiliar o entendimento desse completo processo, os pais gregos usaram duas imagens. O Pai pronuncia sua palavra; e ao mesmo tempo em que emite essa palavra, ele sopra com a finalidade de fazê-la conhecida e acolhida. A imagem usada aqui, que é fortemente fundamentada na tradição bíblica, é a do Filho como a Palavra de Deus e a do Espírito como o Sopro de Deus. Um óbvia questão é levantada aqui: por que deveriam os pais capadócios, e ouros escritores gregos, gastar tempo e esforço em distinguir o Filho e o Espírito dessa maneira? A resposta é importante. Uma falha em distinguir os modos por meio dos quais o Filho e o Espírito são derivados de um único e mesmo Pai levaria à hipótese de Deus ter dois filhos, o que teria levantado problemas insuperáveis.
Nesse contexto, é impensável que o Espírito Santo deveria proceder tanto do Pai como do Filho. Por quê? Porque isso comprometeria totalmente o princípio do Pai como a única origem e fonte de toda a divindade. Isso significaria a afirmação de que havia duas fontes de divindade em uma única Trindade, com todas as contradições e tensões internas que isso geraria. Se o Filho compartilhasse do dom exclusivo do Pai, como fonte de toda divindade, esse dom deixaria de ser exclusivo. Por essa razão, a igreja grega considerava a ideia ocidental de uma “dupla origem” do Espírito como algo que se aproximava de uma total incredulidade.
A tradição grega, entretanto, não era totalmente unânime nesse ponto. Cirilo de Alexandria não hesitava ao falar do Espírito coo “pertencendo ao Filho” e ideias correlatas desenvolviam-se rapidamente na igreja ocidental. Antigos escritores cristãos ocidentais eram deliberadamente vagos sobre o preciso papel do Espírito Santo na Trindade. Hilário de Poitiers, em seu tratado Sobre a Trindade, contentou-se com uma declaração de que não “diria nada sobre o Espírito Santo [de Deus] exceto que ele era Espírito [de Deus]”. Essa atitude vaga acreditava somente na completa divindade do Pai e do Filho. Hilário, entretanto, em outras passagens do mesmo tratado, deixa claro que distinguia o Novo Testamento apontar para o Espírito como procedente tanto do Pai como do Filho, em vez de somente do Pai.
Esse entendimento de que o Espírito teve sua origem no Pai e no Filho foi desenvolvendo-se e recebeu sua forma clássica em Agostinho de Hipona. Agostinho de Hipona, provavelmente partindo da posição sugerida por Hilário, argumentava que o Espírito devia ser entendido como oriundo do Filho. João 20:22, era um de seus textos essenciais, o qual relata ter o Cristo ressuscitado, soprado sobre seus discípulos e dito: “Recebei o Espírito Santo”. Agostinho de Hipona, em sua obra Sobre a Trindade, explica isso da seguinte maneira:
Da mesma forma não podemos dizer que o Espírito Santo também não proceda do Filho. Apesar de tudo, diz-se que o Espírito é o Espírito tanto do Pai como do Filho... [nesse ponto, João 20:22 é citado] O Espírito Santo procede não apenas do Pai, mas também do Filho.
Ao fazer essa declaração, Agostinho de Hipona penso estar resumindo um consenso tanto para a igreja ocidental como para a, oriental. Infelizmente, seu conhecimento do grego não pareceu ter sido bom o suficiente para perceber que os escritores capadócios, de fala grega, adotavam uma posição.
Existem boas razões de por que nessa Trindade falamos somente a respeito do Filho como a Palavra de Deus, somente do Espírito Santo como um dom de Deus e somente do Pai como o único de quem a Palavra é gerada e de quem o Espírito Santo, principalmente, procede. Adicionei a palavra “principalmente”, porque aprendemos que o Espírito Santo procede também do Filho. Mas isso é novamente algo dado pelo Pai do Filho – não que ele não existisse sem isso, pois tudo o que o Pai dá para seu unigênito ele o faz no ato de gerá-lo. Portanto, Ele é gerado de tal maneira que o dom comum procede também dele e o Espírito Santo de ambos.
Portanto, o que Agostinho de Hipona pensava estar fazendo ao entender a atribuição do Espírito Santo dessa maneira? A resposta encontra-se em seu entendimento diferenciado do Espírito Santo como o “elo de amor” entre o Pai e o Filho. Agostinho de Hipona desenvolveu a ideia de relação na Trindade, argumentando que suas pessoas são definidas por suas mútuas relações. Deve-se, portanto, ver o Espírito como a relação de amor e de comunhão entre o Pai e o Filho. Agostinho de Hipona acreditava ser essa relação fundamental para a apresentação, no quarto evangelho, da unidade de vontade e propósito do Pai e do Filho.
Podemos resumir as distinções essenciais entre as duas abordagens da seguinte maneira.
1. A intenção grega era resguardar a exclusiva posição do Pai como a única fonte de divindade. Pelo fato de que tanto o Filho como o Espírito derivam-se dele, embora de maneiras distintas, mas igualmente válidas, suas origens divinas estavam garantidas. Para os gregos, a abordagem latina parecia introduzir duas fontes distintas de divindade na Trindade e enfraquecer a distinção vital entre o Filho e o Espírito. O Filho e o Espírito devem ser entendidos como possuindo atribuições distintas, porém, complementares, enquanto que a tradição ocidental vê o Espírito como o Espírito de Cristo. De fato, um grande número de escritores modernos ligados à tradição oriental, como o escritor russo Vladimir Lossky, criticaram a abordagem ocidental. Lossky, em seu ensaio Processão do Espírito Santo, argumenta que a abordagem ocidental inevitavelmente despersonaliza o Espírito, levando a uma ênfase inadequada sobre a obra e a pessoa de Cristo, e reduz a Trindade a um princípio impessoal.
2. A intenção latina era assegurar que o Filho e o Espírito fossem adequadamente diferenciados um do outro e, ao mesmo tempo, demonstrar que mantinham um mútuo relacionamento. A forte abordagem relacional para a ideia de “pessoa” adotada tornou inevitável que o Espírito fosse tratado dessa maneira. Sensíveis em relação à posição grega, os antigos escritores latinos enfatizaram que não consideravam sua abordagem como pressuposto de duas fontes de divindade na Trindade. Isso ficou particularmente evidente no Décimo Primeiro Concílio de Toledo, ao qual já fizemos referência neste capítulo.
Cremos que o Espirito Santo, a terceira pessoa da Trindade, seja Deus, um e igual a Deus Pai e a Deus Filho, de uma só substância e uma só natureza; não sendo, entretanto, gerado ou criado, mas procedendo de ambos, e que ele é o Espírito de ambos. Nós também acreditamos que o Espírito Santo não é semelhante àquele que “não foi gerado”, pois se assim o chamássemos admitiríamos a existência de dois pais, nem mesmo podemos considera-lo semelhante àquele que foi “gerado”, pois pareceríamos estar pregando a existência de dois filhos. Ele é, contudo, chamado o Espírito não somente do Pai para o Filho nem do Filho para santificar suas criaturas, mas demonstra-se que ele procede de ambos ao mesmo tempo, uma vez que é conhecido como o amor e a santidade de ambos. Logo, cremos que o Espírito Santo é enviado por ambos, assim como o Filho é enviado pelo Pai. Ele não é, entretanto, de menor importância que o Pai ou o Filho.
Ideias similares foram afirmadas por concílios posteriores. Dessa forma, o Concílio de Lion (1274) declarou que “o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, contudo, não como se tivesse duas origens, mas apenas uma única origem”. Entretanto, apesar dessa explicações, a doutrina permanece como uma fonte de discussão entre cristãos ocidentais e orientais, que parece pouco provável de ser removida em um futuro próximo.
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MCGRATH, Alister E. Teologia: sistemática, histórica e filosófica. Uma introdução à teologia cristã. São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p.395-398.
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