por Vincent Cheung
Há uma escola de filosofia que toma a Palavra de Deus como seu primeiro princípio, para depois deduzir o seu sistema. Ela rejeita os falsos métodos de descobrimento como intuição, sensação, processos irracionais e outros pontos de partida. Essa abordagem está correta. Na verdade, é a única abordagem correta. No entanto, os seguidores dessa filosofia muitas vezes falham em considerar verdadeiramente a Palavra de Deus como sendo o seu primeiro princípio e deduzem as suas conclusões a partir disso. Seu primeiro princípio é, muitas vezes, suas próprias teorias filosóficas sobre a Palavra de Deus ao invés da própria Palavra de Deus.
Por essa motivo, a maioria deles são cessacionistas. Eles alegam que o conhecimento vem somente da Palavra de Deus, de tal modo que profecias e revelações são descartadas, embora a Palavra de Deus nos prometa e nos ordene receber profecias e revelações. Se a Palavra de Deus é o ponto de partida deles, o seu fundamento, a sua autoridade final, então eles vão curar os enfermos e expulsar os demônios. Mas eles não querem. Isto é uma evidência de que o primeiro princípio deles não é a Palavra de Deus, mas que, assim como os seus oponentes, o primeiro princípio deles consiste em suas próprias suposições sobre o mundo.
Outro exemplo seria a sua negação de autoconhecimento, isto é, que é possível conhecer-se a si mesmo. Uma vez que o conhecimento vem de deduções da Escritura, e uma vez que a dedução não pode aceitar premissas de fora da Escritura, e uma vez aparentemente não se pode encontrar informação explícita sobre si mesmo na Escritura, então segue-se que não se pode deduzir o conhecimento sobre si mesmo a partir da Escritura. Muitas vezes isso é aplicado até mesmo sobre a certeza da nossa salvação. Essa não é uma explicação matizada, e os membros deste campo podem se expressar de formas diferentes, mas o ponto é que eles são céticos quanto a possibilidade de auto-conhecimento.
Os seguidores dessa filosofia quase sempre se referem a Jeremias 17:9, onde se diz: “O coração é enganoso acima de todas as coisas, e desesperadamente perverso: quem pode conhecê-lo?” (KJV). Contudo, essa aplicação do versículo é um erro devastador. A primeira regra da interpretação bíblica é a observação do contexto. Deus decretou uma invasão estrangeira contra o seu povo por causa da maldade deles. Em vez de retornarem para Deus, em arrependimento e obediência, eles confiaram nos seus ídolos, seus exércitos, suas armas e no seu parentesco. Deus disse por meio de Jeremias: “Assim diz o Senhor: ‘Maldito é o homem que confia nos homens, que faz da humanidade mortal a sua força, mas cujo coração se afasta do Senhor’” (17:5).
É sob esse contexto que o versículo 9 diz: “O coração é enganoso acima de todas as coisas, e desesperadamente perverso: quem pode conhecê-lo?” O versículo é mais sobre conhecer os outros do sobre conhecer a si mesmo. Se você confiar em outras pessoas, você será decepcionado, porque o coração humano é enganoso e perverso. Mas se você confiar no Senhor, você será estabelecido (v.7-8). Talvez ainda seja possível desafiar o autoconhecimento com isso, mas não é a intenção do versículo. Ignorar o significado do próprio versículo e usar-lo para manter uma filosofia que afirma considerar a revelação bíblica como o primeiro princípio é um tanto irônico quanto hipócrita.
A primeira regra usual da interpretação bíblica é a observação o contexto, mas não é a minha primeira regra. Os cristãos muitas vezes negligenciam a inspeção dos versículos que estão usando para provar os seus pontos, de modo que eles são refutados mesmo antes que o contexto seja levado em conta. Assim, a minha primeira regra de hermenêutica é: LEIA AS PALAVRAS. Apenas leia a coisa antes de jogá-la nas pessoas. O que diz o versículo 9? “O coração é enganoso acima de todas as coisas, e desesperadamente perverso: quem pode conhecê-lo?” Essa não pode ser uma descrição de um cristão. Esse não pode ser um espírito regenerado. O crente foi regenerado à imagem de Cristo. Ele é uma nova criatura (2 Coríntios 5:17). O amor de Deus foi derramado em seu coração pelo Espírito Santo (Romanos 5:5). Ele foi transformado e aprimorado no nível mais profundo. Seu coração é “enganoso acima de todas as coisas?” É “desesperadamente perverso?” Não. Se ele é assim, então ele ainda é um não-cristão.
Aplicar um versículo como esse sobre todos, incluindo os cristãos, mesmo em relação à sua garantia de salvação, denuncia uma mentalidade de réprobo. Com exceção dos ensinamentos de Jesus e dos apóstolos, e com exceção de alguns dos grupos carismáticos que muitas vezes são criticados por ensinarem um evangelho de fé, ou de auto-aperfeiçoamento, ou da saúde e riqueza, essa mentalidade reprovável é quase universal na história da igreja e da teologia. Essa é uma visão de mundo que retrata Cristo como tendo feito quase nenhuma diferença sobre o cristão. É uma religião que apresenta o cristão como sendo um pecador, mendigo, fraco, doente, pobre e quase morto. É uma falsa humildade que ridiculariza a obra do Espírito Santo.
Deus disse: “‘Esta é a aliança que farei com a comunidade de Israel depois daqueles dias’, declara o Senhor: ‘Porei a minha lei no íntimo deles e a escreverei nos seus corações. Serei o Deus deles, e eles serão o meu povo’” (Jeremias 31:33). Eles não seriam “enganados acima de todas as coisas”. Deus disse: “Darei a vocês um coração novo e porei um espírito novo em vocês; tirarei de vocês o coração de pedra e lhes darei um coração de carne. Porei o meu Espírito em vocês e os levarei a agirem segundo os meus decretos e a obedecerem fielmente às minhas leis” (Ezequiel 36:26-27). Eles não seriam “desesperadamente perversos”.
A Bíblia diz que eu sou a justiça de Deus em Cristo (2 Coríntios 5:21). A Bíblia diz que Deus ordenou que a sua luz brilhasse em meu coração (2 Coríntios 4:6). A Bíblia diz que eu sou o templo do Espírito Santo (1 Coríntios 3:16, 6:19). A Bíblia diz que eu sou mais do que um vencedor por meio daquele que me amou e se entregou por mim (Romanos 8:37). A Bíblia diz que eu venci, porque maior é aquele que está em mim do que aquele que está no mundo (1 João 4: 4). A religião cristã é uma visão de mundo de justiça e vitória. Eu era enganoso acima de todas as coisas, mas agora eu adoro a Deus em espírito e em verdade (João 4:23-24). Eu era desesperadamente perverso, mas agora eu nasci de Deus, e a semente de Deus permanece em mim, e eu não posso continuar pecando, porque eu nasci de Deus (1 João 3:9).
Se a Bíblia é verdadeiramente o seu primeiro princípio, então isso é o que você deduz dela. Ou você serve a “Bíblia” da boca para fora, como um som ou um símbolo, mas considera aquilo que ela diz como lixo? A mentalidade reprovada pertence ao incrédulo. Ela endossa um evangelho grotesco. Se você pensa como um réprobo, então você deve ser um incrédulo. Se você é um cristão, então você deve admitir que eu estou certo sobre isso. Renove a sua mente agora (Romanos 12:2).
Grande parte da pregação evangélica tem dado voz a Satanás, o Acusador. Diz reivindicar o arrependimento, ao contrário do falso evangelho que meramente afirma que os incrédulos estão nos seus pecados. No entanto, se você prega o arrependimento de acordo com o evangelho, você também prega os resultados que resultam deste arrependimento. Este não é um arrependimento que levará a mais condenação, mais auto-degradação, e mais bajulação. Aquele que verdadeiramente se arrependeu e se voltou para Cristo recebeu o perdão, a purificação, a justiça e a confiança para marchar direto ao trono da graça para obter graça e ajuda em tempo de necessidade (Hebreus 4:16). A Bíblia diz que se o sangue dos animais tivesse sido eficaz, então os adoradores não mais se sentiriam culpados dos seus pecados (Hebreus 10:2). No entanto, grande parte da pregação evangélica apresenta a mensagem cristã como aquela que exige a contínua sensação do pecado. Segue-se que este é um falso evangelho que retrata o sangue de Cristo como não melhor do que o sangue dos animais. Ele não tem o direito de se queixar de um evangelho suave e otimista, quando ele só atende a um outro tipo de ouvidos com comichão – os ouvidos com comichão de masoquismo religioso. Ele afirma restaurar o evangelho, mas procura silenciar o evangelho.
Este é o evangelho de Jesus Cristo: “Portanto, irmãos, temos plena confiança para entrar no Santo dos Santos pelo sangue de Jesus, por um novo e vivo caminho que ele nos abriu por meio do véu, isto é, do seu corpo. Temos, pois, um grande sacerdote sobre a casa de Deus. Sendo assim, aproximemo-nos de Deus com um coração sincero e com plena convicção de fé, tendo os corações aspergidos para nos purificar de uma consciência culpada e tendo os nossos corpos lavados com água pura” (Hebreus 10:19-22). Isso é o que eu tenho. Tenho confiança para entrar no Lugar Santíssimo. Eu me aproximo de Deus com um coração sincero. Tenho plena certeza da fé. Fui purificado de uma consciência culpada. Eu sou um filho de Deus (João 1:12). Eu sou co-herdeiro com Cristo (Romanos 8:17). Eu sou um sacerdote real do Altíssimo (Apocalipse 1:6). Eu não sou enganado acima de todas as coisas. Eu não sou desesperadamente perverso. O filho pródigo recebeu o abraço do pai e foi bem-vindo. Ele recebeu a melhor túnica, um anel e sandálias nos seus pés (Lucas 15:20, 22). Isto é apenas uma leve sugestão do que eu recebi por meio de Jesus Cristo. O Pai me abraçou e me acolheu. O Pai me lavou e me vestiu. Eu recebi a provisão abundante da graça e o dom da justiça de Deus. Agora eu reino em vida por meio deste único homem, Jesus Cristo (Romanos 5:17).
Este é o evangelho básico. Porque os evangélicos não falam assim mais, ou quase nunca? Por que esses teólogos e filósofos virtuosos não ensinam assim? A Bíblia fala assim. Se a Bíblia é o nosso primeiro princípio, então pensaríamos assim, pregaríamos assim, falaríamos assim – o tempo todo. Mas mesmo quando os cristãos são forçados a lidar com essas coisas, quando se deparam com elas nas Escrituras, eles voltam, um minuto depois, a falar como os réprobos. Então eles explodem as pessoas que pregam um evangelho que reconhece as promessas de Deus e os efeitos do evangelho. Por quê? Por causa de uma mentalidade reprovada. Um evangelho reprovado. Uma teologia reprovada. Desesperadamente perversa, de verdade.
Para fazer deduções sobre si mesmo, você vai precisar de premissas sobre si mesmo. A Bíblia também cobre isso. Paulo escreveu: “Pois, quem dentre os homens conhece as coisas do homem, a não ser o espírito do homem que nele está? Da mesma forma, ninguém conhece as coisas de Deus, a não ser o Espírito de Deus” (1 Coríntios 2:11). Derivamos dois pontos disto. Primeiro, isso significa que um homem pode conhecer os seus próprios pensamentos. Assim, ele pode fornecer premissas em deduções bíblicas sobre si mesmo. Neste ponto, basta observar que isso é possível. Como se avalia os seus próprios pensamentos é uma questão a parte. Segundo, um homem só conhece os seus próprios pensamentos, e não os pensamentos de outras pessoas. Os seguidores dessa filosofia que negam o autoconhecimento tropeçaram porque não conseguiram fazer essa simples distinção entre conhecimento público e privado.
Eles geralmente estão debatendo com crentes sobre teorias filosóficas e métodos apologéticos e, ocasionalmente, debatendo com incrédulos sobre a fé cristã, que é onde essas teorias e métodos devem ser utilizados em primeiro lugar. Quase tudo isso envolve argumentos sobre a cosmovisão pública correta, independentemente do que uma pessoa sabe ou pensa em sua própria mente. Temos um primeiro princípio público, e fazemos deduções públicas para outras pessoas com conclusões públicas. Mas quando fazemos deduções sobre nós mesmos com base neste mesmo primeiro princípio, fornecemos premissas que são privadas, que não podemos mostrar ao público ou provar ao público, mesmo que saibamos que elas são verdadeiras. Mas isso é irrelevante na maioria dos debates, uma vez que a maioria dos debates se refere a questões públicas.
Ou seja, num debate sobre ateísmo, eu gostaria de saber se você consegue demonstrar pra mim se o ateísmo está correto, mas não me importa se você consegue demonstrar pra mim que você é um ateu. Você sabe que você é ateu? Talvez, talvez não, mas esse não é o cerne do debate. O mesmo é verdadeiro para o ministério cristão. Posso defender publicamente a fé cristã, e pregar o evangelho. Posso derrotar publicamente qualquer um que se oponha à fé. Por outro lado, não há necessidade de provar ao público que eu sou um cristão do mesmo modo que declaro ao público que a fé cristã é verdadeira. Quando eu prego o evangelho, não estou pregando que eu sou cristão, mas prego para que você seja cristão. Claro, ainda posso fazer alguns argumentos para demonstrar que eu sou um cristão usando as premissas públicas declaradas nas Escrituras, mas outras pessoas não me conhecerão como eu conheço a mim mesmo.
A Bíblia diz que eu sei de meus próprios pensamentos, e isso seria especialmente verdadeiro porque eu sou um cristão. O que eu sei sobre mim não é público e, portanto, não é usado como base para provar algo em um debate público. Uma premissa privada não é compartilhada ou examinada, mas eu posso usá-la como uma premissa em meu próprio raciocínio, e fazer deduções sobre mim. Se alguém nega o autoconhecimento de si mesmo, ele não pode negá-lo a mim, pois a Bíblia diz que eu o tenho. Se alguém declara que o seu primeiro princípio é a Palavra de Deus, mas não pode acomodar o que este primeiro princípio declara, então ele é um mentiroso. Ele tem outro primeiro princípio, e este primeiro princípio não pode acomodar a Palavra de Deus. Ele permitiu que a sua agenda pessoal substituísse o seu compromisso com o evangelho. Ele pretende defender o evangelho, mas a sua própria defesa é um ataque ao evangelho, uma rejeição do evangelho. Sua agenda favorita distorce a sua mente, de modo que ele quase se regozija por não poder obter autoconhecimento. Isso é insanidade. É má filosofia. É a pior teologia.
O tipo mais importante de autoconhecimento é garantido em Cristo. Você pode conhecer sobre si mesmo, e conhecer a si mesmo como um filho de Deus. A Bíblia diz: “Pois vocês não receberam um espírito que os escravize para novamente temer, mas receberam o Espírito que os adota como filhos, por meio do qual clamamos: ‘Aba, Pai’” (Romanos 8:15-16).
Nossos desafios epistemológicos habituais contra as tentativas do homem de derivar o conhecimento de si mesmo não se aplicam aqui. O texto aborda a questão do ponto de vista metafísico, não epistemológico, e diz que isso é algo que Deus faz. Não é algo que o homem descobre, mas algo que Deus realiza. Não é apenas algo que Deus comunica, mas algo que Deus faz, algo que Deus faz com que você seja, e algo que Deus faz com que você tenha. O texto não diz nada sobre qualquer tentativa ou método a ser usado pelo homem para descobrir se ele é um filho de Deus. Não é uma questão com a epistemologia. Você recebe um Espírito de filiação. Você o chama de “Pai” por meio do Espírito. Não diz que você aprendeu isso. Diz que você faz isso. Diz que o Espírito faz alguma coisa – ele testifica com seu espírito de que você é um filho de Deus. Ele testifica. Não diz que você pede pra saber. Não diz que você tenta descobrir. Nem sequer diz que você ouve e recebe. Diz que ele testifica. Ele faz isso.
Deus direciona isso num nível metafísico, arrasando todos os problemas da epistemologia. Não há erro categórico, como se colocássemos um problema em uma categoria e recebêssemos a sua resposta doutra categoria. Toda teoria da epistemologia deve ter uma teoria da metafísica em conjunto com ela e, em primeiro lugar, esse texto satisfaz a ambas categorias, ao mesmo tempo. Diz que Deus faz algo para sermos algo, obtermos algo, ou sabermos algo. Não há nenhum processo ou método de descobrimento. Em outro lugar, a Bíblia diz: “E, porque vocês são filhos, Deus enviou o Espírito de seu Filho aos seus corações, o qual clama: ‘Aba, Pai’” (Gálatas 4: 6). Isso é ainda mais claro de certa forma. Deus enviou seu Espírito em nossos corações. O Espírito clama, “Pai”. Eu sei como uma questão de ser, não por um processo de aprendizagem. Eu sei que sou um filho de Deus por um ato do poder metafísico de Deus. Isso ultrapassa todos os problemas da epistemologia, porque não há espaço para isso. Este autoconhecimento e e esta certeza da salvação, não é apenas garantido, mas é inevitável.
Se você tem crido em Jesus Cristo, então esse conhecimento pertence a você. Se você não tem essa certeza, então, todos os meios para resolver o seu problema estão na Palavra de Deus. A pior coisa que você pode fazer é negar que é possível, ou ajustar a doutrina do evangelho para acomodar a sua filosofia. Sacuda essa mentalidade de réprobo que escraviza a quase todos os cristãos. Veja! Se tivermos confiança diante de Deus, então realizaremos façanhas em seu nome. “Amados, se o nosso coração não nos condenar, temos confiança diante de Deus e recebemos dele tudo o que pedimos, porque obedecemos aos seus mandamentos e fazemos o que lhe agrada. E este é o seu mandamento: que creiamos no nome de seu Filho Jesus Cristo e que nos amemos uns aos outros, como ele nos ordenou. Os que obedecem aos seus mandamentos permanecem nele, e ele neles. Deste modo sabemos que ele permanece em nós: pelo Espírito que nos deu” (1 João 3: 21-24). O que disse? “Deste modo sabemos que ele permanece em nós: pelo Espírito que nos deu”.
----------
Extraído de:
http://www.vincentcheung.com/2017/01/16/the-gospel-guarantee-of-self-knowledge/
Traduzido por: Dione Cândido Jr.
Por essa motivo, a maioria deles são cessacionistas. Eles alegam que o conhecimento vem somente da Palavra de Deus, de tal modo que profecias e revelações são descartadas, embora a Palavra de Deus nos prometa e nos ordene receber profecias e revelações. Se a Palavra de Deus é o ponto de partida deles, o seu fundamento, a sua autoridade final, então eles vão curar os enfermos e expulsar os demônios. Mas eles não querem. Isto é uma evidência de que o primeiro princípio deles não é a Palavra de Deus, mas que, assim como os seus oponentes, o primeiro princípio deles consiste em suas próprias suposições sobre o mundo.
Outro exemplo seria a sua negação de autoconhecimento, isto é, que é possível conhecer-se a si mesmo. Uma vez que o conhecimento vem de deduções da Escritura, e uma vez que a dedução não pode aceitar premissas de fora da Escritura, e uma vez aparentemente não se pode encontrar informação explícita sobre si mesmo na Escritura, então segue-se que não se pode deduzir o conhecimento sobre si mesmo a partir da Escritura. Muitas vezes isso é aplicado até mesmo sobre a certeza da nossa salvação. Essa não é uma explicação matizada, e os membros deste campo podem se expressar de formas diferentes, mas o ponto é que eles são céticos quanto a possibilidade de auto-conhecimento.
Os seguidores dessa filosofia quase sempre se referem a Jeremias 17:9, onde se diz: “O coração é enganoso acima de todas as coisas, e desesperadamente perverso: quem pode conhecê-lo?” (KJV). Contudo, essa aplicação do versículo é um erro devastador. A primeira regra da interpretação bíblica é a observação do contexto. Deus decretou uma invasão estrangeira contra o seu povo por causa da maldade deles. Em vez de retornarem para Deus, em arrependimento e obediência, eles confiaram nos seus ídolos, seus exércitos, suas armas e no seu parentesco. Deus disse por meio de Jeremias: “Assim diz o Senhor: ‘Maldito é o homem que confia nos homens, que faz da humanidade mortal a sua força, mas cujo coração se afasta do Senhor’” (17:5).
É sob esse contexto que o versículo 9 diz: “O coração é enganoso acima de todas as coisas, e desesperadamente perverso: quem pode conhecê-lo?” O versículo é mais sobre conhecer os outros do sobre conhecer a si mesmo. Se você confiar em outras pessoas, você será decepcionado, porque o coração humano é enganoso e perverso. Mas se você confiar no Senhor, você será estabelecido (v.7-8). Talvez ainda seja possível desafiar o autoconhecimento com isso, mas não é a intenção do versículo. Ignorar o significado do próprio versículo e usar-lo para manter uma filosofia que afirma considerar a revelação bíblica como o primeiro princípio é um tanto irônico quanto hipócrita.
A primeira regra usual da interpretação bíblica é a observação o contexto, mas não é a minha primeira regra. Os cristãos muitas vezes negligenciam a inspeção dos versículos que estão usando para provar os seus pontos, de modo que eles são refutados mesmo antes que o contexto seja levado em conta. Assim, a minha primeira regra de hermenêutica é: LEIA AS PALAVRAS. Apenas leia a coisa antes de jogá-la nas pessoas. O que diz o versículo 9? “O coração é enganoso acima de todas as coisas, e desesperadamente perverso: quem pode conhecê-lo?” Essa não pode ser uma descrição de um cristão. Esse não pode ser um espírito regenerado. O crente foi regenerado à imagem de Cristo. Ele é uma nova criatura (2 Coríntios 5:17). O amor de Deus foi derramado em seu coração pelo Espírito Santo (Romanos 5:5). Ele foi transformado e aprimorado no nível mais profundo. Seu coração é “enganoso acima de todas as coisas?” É “desesperadamente perverso?” Não. Se ele é assim, então ele ainda é um não-cristão.
Aplicar um versículo como esse sobre todos, incluindo os cristãos, mesmo em relação à sua garantia de salvação, denuncia uma mentalidade de réprobo. Com exceção dos ensinamentos de Jesus e dos apóstolos, e com exceção de alguns dos grupos carismáticos que muitas vezes são criticados por ensinarem um evangelho de fé, ou de auto-aperfeiçoamento, ou da saúde e riqueza, essa mentalidade reprovável é quase universal na história da igreja e da teologia. Essa é uma visão de mundo que retrata Cristo como tendo feito quase nenhuma diferença sobre o cristão. É uma religião que apresenta o cristão como sendo um pecador, mendigo, fraco, doente, pobre e quase morto. É uma falsa humildade que ridiculariza a obra do Espírito Santo.
Deus disse: “‘Esta é a aliança que farei com a comunidade de Israel depois daqueles dias’, declara o Senhor: ‘Porei a minha lei no íntimo deles e a escreverei nos seus corações. Serei o Deus deles, e eles serão o meu povo’” (Jeremias 31:33). Eles não seriam “enganados acima de todas as coisas”. Deus disse: “Darei a vocês um coração novo e porei um espírito novo em vocês; tirarei de vocês o coração de pedra e lhes darei um coração de carne. Porei o meu Espírito em vocês e os levarei a agirem segundo os meus decretos e a obedecerem fielmente às minhas leis” (Ezequiel 36:26-27). Eles não seriam “desesperadamente perversos”.
A Bíblia diz que eu sou a justiça de Deus em Cristo (2 Coríntios 5:21). A Bíblia diz que Deus ordenou que a sua luz brilhasse em meu coração (2 Coríntios 4:6). A Bíblia diz que eu sou o templo do Espírito Santo (1 Coríntios 3:16, 6:19). A Bíblia diz que eu sou mais do que um vencedor por meio daquele que me amou e se entregou por mim (Romanos 8:37). A Bíblia diz que eu venci, porque maior é aquele que está em mim do que aquele que está no mundo (1 João 4: 4). A religião cristã é uma visão de mundo de justiça e vitória. Eu era enganoso acima de todas as coisas, mas agora eu adoro a Deus em espírito e em verdade (João 4:23-24). Eu era desesperadamente perverso, mas agora eu nasci de Deus, e a semente de Deus permanece em mim, e eu não posso continuar pecando, porque eu nasci de Deus (1 João 3:9).
Se a Bíblia é verdadeiramente o seu primeiro princípio, então isso é o que você deduz dela. Ou você serve a “Bíblia” da boca para fora, como um som ou um símbolo, mas considera aquilo que ela diz como lixo? A mentalidade reprovada pertence ao incrédulo. Ela endossa um evangelho grotesco. Se você pensa como um réprobo, então você deve ser um incrédulo. Se você é um cristão, então você deve admitir que eu estou certo sobre isso. Renove a sua mente agora (Romanos 12:2).
Grande parte da pregação evangélica tem dado voz a Satanás, o Acusador. Diz reivindicar o arrependimento, ao contrário do falso evangelho que meramente afirma que os incrédulos estão nos seus pecados. No entanto, se você prega o arrependimento de acordo com o evangelho, você também prega os resultados que resultam deste arrependimento. Este não é um arrependimento que levará a mais condenação, mais auto-degradação, e mais bajulação. Aquele que verdadeiramente se arrependeu e se voltou para Cristo recebeu o perdão, a purificação, a justiça e a confiança para marchar direto ao trono da graça para obter graça e ajuda em tempo de necessidade (Hebreus 4:16). A Bíblia diz que se o sangue dos animais tivesse sido eficaz, então os adoradores não mais se sentiriam culpados dos seus pecados (Hebreus 10:2). No entanto, grande parte da pregação evangélica apresenta a mensagem cristã como aquela que exige a contínua sensação do pecado. Segue-se que este é um falso evangelho que retrata o sangue de Cristo como não melhor do que o sangue dos animais. Ele não tem o direito de se queixar de um evangelho suave e otimista, quando ele só atende a um outro tipo de ouvidos com comichão – os ouvidos com comichão de masoquismo religioso. Ele afirma restaurar o evangelho, mas procura silenciar o evangelho.
Este é o evangelho de Jesus Cristo: “Portanto, irmãos, temos plena confiança para entrar no Santo dos Santos pelo sangue de Jesus, por um novo e vivo caminho que ele nos abriu por meio do véu, isto é, do seu corpo. Temos, pois, um grande sacerdote sobre a casa de Deus. Sendo assim, aproximemo-nos de Deus com um coração sincero e com plena convicção de fé, tendo os corações aspergidos para nos purificar de uma consciência culpada e tendo os nossos corpos lavados com água pura” (Hebreus 10:19-22). Isso é o que eu tenho. Tenho confiança para entrar no Lugar Santíssimo. Eu me aproximo de Deus com um coração sincero. Tenho plena certeza da fé. Fui purificado de uma consciência culpada. Eu sou um filho de Deus (João 1:12). Eu sou co-herdeiro com Cristo (Romanos 8:17). Eu sou um sacerdote real do Altíssimo (Apocalipse 1:6). Eu não sou enganado acima de todas as coisas. Eu não sou desesperadamente perverso. O filho pródigo recebeu o abraço do pai e foi bem-vindo. Ele recebeu a melhor túnica, um anel e sandálias nos seus pés (Lucas 15:20, 22). Isto é apenas uma leve sugestão do que eu recebi por meio de Jesus Cristo. O Pai me abraçou e me acolheu. O Pai me lavou e me vestiu. Eu recebi a provisão abundante da graça e o dom da justiça de Deus. Agora eu reino em vida por meio deste único homem, Jesus Cristo (Romanos 5:17).
Este é o evangelho básico. Porque os evangélicos não falam assim mais, ou quase nunca? Por que esses teólogos e filósofos virtuosos não ensinam assim? A Bíblia fala assim. Se a Bíblia é o nosso primeiro princípio, então pensaríamos assim, pregaríamos assim, falaríamos assim – o tempo todo. Mas mesmo quando os cristãos são forçados a lidar com essas coisas, quando se deparam com elas nas Escrituras, eles voltam, um minuto depois, a falar como os réprobos. Então eles explodem as pessoas que pregam um evangelho que reconhece as promessas de Deus e os efeitos do evangelho. Por quê? Por causa de uma mentalidade reprovada. Um evangelho reprovado. Uma teologia reprovada. Desesperadamente perversa, de verdade.
Para fazer deduções sobre si mesmo, você vai precisar de premissas sobre si mesmo. A Bíblia também cobre isso. Paulo escreveu: “Pois, quem dentre os homens conhece as coisas do homem, a não ser o espírito do homem que nele está? Da mesma forma, ninguém conhece as coisas de Deus, a não ser o Espírito de Deus” (1 Coríntios 2:11). Derivamos dois pontos disto. Primeiro, isso significa que um homem pode conhecer os seus próprios pensamentos. Assim, ele pode fornecer premissas em deduções bíblicas sobre si mesmo. Neste ponto, basta observar que isso é possível. Como se avalia os seus próprios pensamentos é uma questão a parte. Segundo, um homem só conhece os seus próprios pensamentos, e não os pensamentos de outras pessoas. Os seguidores dessa filosofia que negam o autoconhecimento tropeçaram porque não conseguiram fazer essa simples distinção entre conhecimento público e privado.
Eles geralmente estão debatendo com crentes sobre teorias filosóficas e métodos apologéticos e, ocasionalmente, debatendo com incrédulos sobre a fé cristã, que é onde essas teorias e métodos devem ser utilizados em primeiro lugar. Quase tudo isso envolve argumentos sobre a cosmovisão pública correta, independentemente do que uma pessoa sabe ou pensa em sua própria mente. Temos um primeiro princípio público, e fazemos deduções públicas para outras pessoas com conclusões públicas. Mas quando fazemos deduções sobre nós mesmos com base neste mesmo primeiro princípio, fornecemos premissas que são privadas, que não podemos mostrar ao público ou provar ao público, mesmo que saibamos que elas são verdadeiras. Mas isso é irrelevante na maioria dos debates, uma vez que a maioria dos debates se refere a questões públicas.
Ou seja, num debate sobre ateísmo, eu gostaria de saber se você consegue demonstrar pra mim se o ateísmo está correto, mas não me importa se você consegue demonstrar pra mim que você é um ateu. Você sabe que você é ateu? Talvez, talvez não, mas esse não é o cerne do debate. O mesmo é verdadeiro para o ministério cristão. Posso defender publicamente a fé cristã, e pregar o evangelho. Posso derrotar publicamente qualquer um que se oponha à fé. Por outro lado, não há necessidade de provar ao público que eu sou um cristão do mesmo modo que declaro ao público que a fé cristã é verdadeira. Quando eu prego o evangelho, não estou pregando que eu sou cristão, mas prego para que você seja cristão. Claro, ainda posso fazer alguns argumentos para demonstrar que eu sou um cristão usando as premissas públicas declaradas nas Escrituras, mas outras pessoas não me conhecerão como eu conheço a mim mesmo.
A Bíblia diz que eu sei de meus próprios pensamentos, e isso seria especialmente verdadeiro porque eu sou um cristão. O que eu sei sobre mim não é público e, portanto, não é usado como base para provar algo em um debate público. Uma premissa privada não é compartilhada ou examinada, mas eu posso usá-la como uma premissa em meu próprio raciocínio, e fazer deduções sobre mim. Se alguém nega o autoconhecimento de si mesmo, ele não pode negá-lo a mim, pois a Bíblia diz que eu o tenho. Se alguém declara que o seu primeiro princípio é a Palavra de Deus, mas não pode acomodar o que este primeiro princípio declara, então ele é um mentiroso. Ele tem outro primeiro princípio, e este primeiro princípio não pode acomodar a Palavra de Deus. Ele permitiu que a sua agenda pessoal substituísse o seu compromisso com o evangelho. Ele pretende defender o evangelho, mas a sua própria defesa é um ataque ao evangelho, uma rejeição do evangelho. Sua agenda favorita distorce a sua mente, de modo que ele quase se regozija por não poder obter autoconhecimento. Isso é insanidade. É má filosofia. É a pior teologia.
O tipo mais importante de autoconhecimento é garantido em Cristo. Você pode conhecer sobre si mesmo, e conhecer a si mesmo como um filho de Deus. A Bíblia diz: “Pois vocês não receberam um espírito que os escravize para novamente temer, mas receberam o Espírito que os adota como filhos, por meio do qual clamamos: ‘Aba, Pai’” (Romanos 8:15-16).
Nossos desafios epistemológicos habituais contra as tentativas do homem de derivar o conhecimento de si mesmo não se aplicam aqui. O texto aborda a questão do ponto de vista metafísico, não epistemológico, e diz que isso é algo que Deus faz. Não é algo que o homem descobre, mas algo que Deus realiza. Não é apenas algo que Deus comunica, mas algo que Deus faz, algo que Deus faz com que você seja, e algo que Deus faz com que você tenha. O texto não diz nada sobre qualquer tentativa ou método a ser usado pelo homem para descobrir se ele é um filho de Deus. Não é uma questão com a epistemologia. Você recebe um Espírito de filiação. Você o chama de “Pai” por meio do Espírito. Não diz que você aprendeu isso. Diz que você faz isso. Diz que o Espírito faz alguma coisa – ele testifica com seu espírito de que você é um filho de Deus. Ele testifica. Não diz que você pede pra saber. Não diz que você tenta descobrir. Nem sequer diz que você ouve e recebe. Diz que ele testifica. Ele faz isso.
Deus direciona isso num nível metafísico, arrasando todos os problemas da epistemologia. Não há erro categórico, como se colocássemos um problema em uma categoria e recebêssemos a sua resposta doutra categoria. Toda teoria da epistemologia deve ter uma teoria da metafísica em conjunto com ela e, em primeiro lugar, esse texto satisfaz a ambas categorias, ao mesmo tempo. Diz que Deus faz algo para sermos algo, obtermos algo, ou sabermos algo. Não há nenhum processo ou método de descobrimento. Em outro lugar, a Bíblia diz: “E, porque vocês são filhos, Deus enviou o Espírito de seu Filho aos seus corações, o qual clama: ‘Aba, Pai’” (Gálatas 4: 6). Isso é ainda mais claro de certa forma. Deus enviou seu Espírito em nossos corações. O Espírito clama, “Pai”. Eu sei como uma questão de ser, não por um processo de aprendizagem. Eu sei que sou um filho de Deus por um ato do poder metafísico de Deus. Isso ultrapassa todos os problemas da epistemologia, porque não há espaço para isso. Este autoconhecimento e e esta certeza da salvação, não é apenas garantido, mas é inevitável.
Se você tem crido em Jesus Cristo, então esse conhecimento pertence a você. Se você não tem essa certeza, então, todos os meios para resolver o seu problema estão na Palavra de Deus. A pior coisa que você pode fazer é negar que é possível, ou ajustar a doutrina do evangelho para acomodar a sua filosofia. Sacuda essa mentalidade de réprobo que escraviza a quase todos os cristãos. Veja! Se tivermos confiança diante de Deus, então realizaremos façanhas em seu nome. “Amados, se o nosso coração não nos condenar, temos confiança diante de Deus e recebemos dele tudo o que pedimos, porque obedecemos aos seus mandamentos e fazemos o que lhe agrada. E este é o seu mandamento: que creiamos no nome de seu Filho Jesus Cristo e que nos amemos uns aos outros, como ele nos ordenou. Os que obedecem aos seus mandamentos permanecem nele, e ele neles. Deste modo sabemos que ele permanece em nós: pelo Espírito que nos deu” (1 João 3: 21-24). O que disse? “Deste modo sabemos que ele permanece em nós: pelo Espírito que nos deu”.
----------
Extraído de:
http://www.vincentcheung.com/2017/01/16/the-gospel-guarantee-of-self-knowledge/
Traduzido por: Dione Cândido Jr.
Nenhum comentário:
Postar um comentário