sábado, 30 de abril de 2016

Nº 21



A RELAÇÃO ENTRE PERFEIÇÃO E IMPERFEITO (PARTE 1)
por D. A. Carson

Quando vier o que é “perfeito”, o “imperfeito” desaparecerá (NVI): qual é a relação entre essas duas categorias?

Alguns detalhes são claros. É óbvio que o que passa não é o conhecimento em si, mas sim o dom carismático do conhecimento (pois o conhecimento em si nunca será extinto; e, se fosse, ninguém o conheceria); não é o conteúdo da profecia, mas as profecias individuais; e, por inferência, Paulo tem em mente, sem dúvida, todo o arsenal carismático. O momento de sua passagem está claramente relacionado com o contraste entre o que é “perfeito” e o que é “imperfeito” (v.10 [NVI]). O último é uma expressão sintética baseada numa frase adverbial preposicional [1] encontrada três vezes nesses versículos: “em parte conhecemos”, “em parte profetizamos” (ambas no v.9 [NVI]) e, de novo, “conheço em parte” (v.12): isto é, nosso conhecimento das coisas divinas é parcial, e nossas profecias, de igual modo, produzem, na melhor das hipóteses, informação parcial. Essa expressão adverbial preposicional é então substantivada no versículo 10 pela adição de um artigo [2] e é traduzida (pela NVI) por “o que é imperfeito” – ou seja, o que é parcial. O desaparecimento desse tipo de “imperfeição” ou parcialidade é dependente da vinda do que é “perfeito” (v.10) [3], que permanece diante da natureza da “parcialidade” dos dons carismáticos nos dias de Paulo. Isso fica claro pelo versículo 12b: “Agora conheço em parte, mas depois conhecerei plenamente, assim como também sou plenamente conhecido”.

Mas quando o que é perfeito vem e em que isso consiste? Há três grupos de teorias [4]

Defende-se com veemência que “perfeição” se refere à maturidade da igreja ou À maturidade de cada cristão [5]. A palavra, no uso do Novo Testamento, muitas vezes se relaciona a algum desses tipos de maturidade cristã; portanto (argumenta-se), Paulo de forma proposicional escolhe o termo nesse caso para manter em aberto o sentido preciso dessa maturidade. Se o Senhor voltasse antes da morte de Paulo, isso traria a “maturidade” ou “perfeição” prometida; se não, a conclusão do cânon e toda a informação que o crente precisa para a maturidade espiritual trariam essa “perfeição”.

Argumenta-se também com veemência que a “perfeição” é a conclusão do cânon [6]. Muito do estímulo a essa posição tem origem em uma preocupação profunda com a finalidade da verdade bíblica. Se o dom de profecia, digamos, tem sido exercido com a mesma autoridade que tinha nas pessoas de Isaías, Jeremias ou Amós, é extremamente difícil enxergar como, se o dom de profecia ainda existe, alguém pode evitar cair nos erros da postura das seitas [7]. Por que os atuais profetas não escrevem suas profecias, que deveriam então ser aceitas como “cânon” pela igreja? Embora eu argumentarei brevemente que essa interpretação está errada, é preciso ser dito que os carismáticos nem sempre entenderam a complexidade da questão. Em um ensaio recente, por exemplo, um estudioso carismático ridiculariza, com agressividade, a posição daqueles que querem fazer uma distinção entre o modo de Deus conceder seus dons antes da conclusão dos escritos inspirados e depois de sua conclusão, acusando-os de forçar uma dicotomia entre um “Deus pré-canônico” e um “Deus pós-canônico”. Há certa percepção nessa acusação; todavia, ela não aborda as difíceis questões sobre como deveríamos pensar a respeito da singularidade da autorrevelação de Deus em Jesus e na primeira geração de testemunhas.

A terceira interpretação, a mais aceita pela maioria, é que a “perfeição” se relaciona com a parúsia (ou, presumivelmente, com a morte, se isso interferir e se a questão da “perfeição” for considerada de um ponto de vista simplesmente, em vez de absolutamente, individual). Digo “se relaciona com a parúsia”, em vez de a própria parúsia, porque alguns fizeram a objeção pelo fato de a palavra parousia ser feminina, enquanto que a palavra correspondente à “perfeição” é masculina. A objeção não tem mérito, pois “perfeição” não é a parúsia em si, mas o estado de coisas trazido pela chegada da parúsia.

O resultado do debate sobre essas posições é muito importante, pois Paulo escreve que o que é imperfeito desaparecerá quando vier o que é perfeito (NVI). Em outras palavras, os dons de profecia, conhecimento e línguas (e, por inferência, a maioria [8] dos dons carismáticos) desaparecerão em algum momento futuro, em relação ao tempo em que Paulo escreve, caracterizado por ele como “perfeição”. Se esse momento for estabelecido no primeiro ou no segundo século, então nenhum suposto dom de profecia, conhecimento ou línguas é válido hoje. Por outro lado, se esse momento for estabelecido na parúsia, então não há nada nessa passagem para excluir um dom válido de línguas ou profecia hoje. É claro que isso não necessariamente significa que toda reivindicação atual de algum dom carismático particular seja válida. Também não significa necessariamente que um dom carismático ou dons carismáticos não possam ter desaparecido antes da parúsia. Significa, contudo, que a Escritura não oferece fundamento para os que querem eliminar todas as reivindicações dos dons carismáticos hoje.



Notas:
[1] ek mérous.
[2] to ek mérous.
[3] to téleion. 
[4] Na minha opinião, as três melhores discussões sobre essas questões estão em: K. S. Hemphill, “The Pauline Concepto f Charismata: A Situational and Developmental Approach” (tese de doutorado, Cambrigde University, 1976), 113ss.; Wayne A. Grudem, The Gift of Prophecy in 1 Corinthians (Washington, D. C.: University Press of America, 1982); e M. M. B. Turner, “Spiritual Gifts Then and Now”, Vox Evangelica 15 (1985): 39.
[5] Especialmente por Thomas, Understanding Spiritual Gifts, 106ss.
[6] Veja especialmente Douglas Judisch, An Evaluation of Claims to the Charismatic Gifts (Grand Rapids: Baker, 1978), mas essa posição é muito comum entre os autores não carismáticos que tratam da questão.
[7] Por exemplo, mesmo um estudioso como Richard B. Gaffin, Jr., Perspectives on Pentecost: New Testament Teaching on Gifts of the Holy Spirit (Phillipsburg, N. J.: Presbyterian and Reformed, 1979), que reconhece que to téleion está relacionado com a parúsia, ainda argumenta que profecia, línguas e similares são modos de revelação e que a formação das Escrituras já cessou. Se isso for admitido, é sem fundamento insistir que essa passagem ensina que os modos de revelação admitido, profecia e línguas, devem permanecer sendo exercidos até a volta de Cristo. Paulo não tem a intenção de especificar o momento em que determinado modo cessará. O que ele afirma é que há um término para o conhecimento fragmentário presente do cristão, com base nos modos de revelação temporários, quando “o que é perfeito” vier. O tempo da cessação da profecia e das línguas é um questão aberta tanto quanto essa passagem em questão (p.111).
Em outras palavras, Gaffin reconhece que essa passagem não pode ser usada para ensinar que profecia e línguas cessaram no primeiro ou no segundo século; portanto, ele tenta neutralizar a relação com a parúsia dizendo que o tempo exato da cessação não é absolutamente especificado. A questão pode, então, ser tratada mais no campo da dogmática do que no da exegese. Todavia, Paulo especifica que a profecia e outros dons cessarão quando o que é perfeito vier; e, se de acordo com Gaffin essa perfeição se relaciona com a parúsia, então sua interpretação possui pouco embasamento no texto.
[8] Digo a “maioria” porque cárisma, como vimos no primeiro capítulo, pode se referir à própria salvação, a qual, como se presume, não desaparece (embora esse exemplo a incompletude de sua realização presente individualmente desaparecerá). Além disso, o dom do apostolado (12:28) tem certas peculiaridades associadas a ele que mencionarei no próximo capítulo.


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Extraído de:
CARSON, D. A. A manifestação do Espírito. A contemporaneidade dos dons à luz de 1Coríntios 12–14. São Paulo: Vida Nova, 2013, p.69-72.

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