sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Nº 51



REFUTAÇÃO À RICHARD GAFFIN (PARTE 1)
por Sam Storms

Minha resposta ao ensaio de Richard Gaffin será inevitavelmente seletiva. Optei por enfocar dez questões fundamentais que, segundo creio, definem a diferença entre os cessacionistas e, para empregar o termo de Gaffin, continuístas tais como eu mesmo e Douglas Oss. Minha discordância com os argumentos dele a favor do cessacionismo, embora seja vigorosa, não diminui, de modo algum, meu profundo respeito por ele, tanto como estudioso da mais alta categoria, quanto, o que é mais importante, como irmão em Cristo.

1. Gaffin levanta objeções, e com razão, à descrição dos cessacionistas como defensores do racionalismo deísta. No entanto, é verdade que os cessacionistas geralmente revelam ceticismo no tocante às afirmações pós-apostólicas quanto ao sobrenatural, ceticismo que parece estar alimentado pela crença de que, se for possível uma explicação natural de um fenômeno, esta é a mais provável. Os cessacionistas não esperam, geralmente, que o Espírito Santo opere de modo abertamente sobrenatural e milagroso, e geralmente não estão tão dispostos, como outros, a achar a causa de certos fenômenos de caráter físico e espiritual na interação dinâmica entre seres espirituais (anjos e demônios) ou na ação imediata da terceira pessoa da Trindade.

Em parte porque acreditam que a atividade carismática do Espírito se concentra no chamado período “fundamental” no primeiro século da vida eclesiástica. Mas também pode ser devido ao impacto combinado, embora muitas vezes pouco consciente, de vários fatores, tais como a preocupação com os perigos que consideram ser subjetivismo excessivo, o desejo pela moderação e calma, a falta de experiência com os fenômenos carismáticos[1], e um desdém, velado, pela forma de piedade muitas vezes sem sofisticação e anti-intelectual, de quem às vezes está demasiadamente disposto a ver o sobrenatural nos incidentes rotineiros da vida diária.

2. Gaffin apela ao propósito do Pentecoste na história da redenção como base para rejeitar a noção pentecostal tradicional de “segunda bênção”. Embora eu concorde com ele no tocante à posição do batismo no Espírito na ordo salutis, seu argumento poderia ser usado para comprovar mais do que deveria.

Gaffin argumenta que o pentecoste pertence à consumação, de uma vez por todas, da nossa redenção, e não à sua aplicação contínua, nem à apropriação dos seus benefícios no decorrer do tempo. É por isso que o que aconteceu naquele dia não pode ser paradigma permanente para a experiência cristã consequente. Tal conceito, porém, é enganoso. Embora seja verdade que o dia de Pentecoste, quando o Espírito foi derramado de modo sem precedentes, fosse único, isso não subentende, de modo algum, e muito menos sequer, que os cristãos nas eras posteriores experimentassem o Espírito e o seu poder da mesma maneira que os 120 que se reuniram no cenáculo (tenho em mente o dom de línguas, a profecia, e a experiência de sonhos e visões em At. 2:5-21, e não o som proveniente do céu nem as “línguas de fogo” nos versículos 2 e 3).

Devemos perguntar: “Em que sentido o Pentecoste serve como evento único?” O Pentecoste não é simplesmente a etapa final da obra salvífica de Cristo; é também a primeira etapa da obra do Espírito na igreja, para revesti-la de poder. Aqueles na igreja primitiva relembram o Pentecoste menos por ter sido incomparável, e mais por ter sido inaugural.

Gaffin diz que a obra salvífica de Cristo Jesus “atinge seu auge” (p.32) no batismo com o Espírito no Pentecoste, a “culminação” do ministério do messias. Mas semelhante terminologia não deve obscurecer o fato de que o Pentecoste é igualmente o início da obra nova contínua do Messias na vida de todos os que a aceitam. Ninguém nega que o Pentecoste seja a culminação da obra de Cristo. Afinal, Cristo prometeu, ao partir desta terra, que enviaria o Espírito. A pergunta em pauta é: Cristo enviou o Espírito Santo para fazer o quê? A perspectiva de Lucas é que o Pentecoste é uma articulação da história da redenção, na qual se movimentam tanto a consumação histórica de Cristo, e sua aplicação, aos cristãos no futuro, a todos quantos crerem.

Pedro diz a respeito do Pentecoste: “Isto é o que foi predito” (At. 2:16) por Joel que aconteceria nos “últimos dias” – o período da história da redenção que, segundo sabemos, é a era da igreja (v. 1Co. 10:11; 1Tm. 4:1; 2Tm. 3:1; Hb. 1:2; 1Pe. 1:20; 2Pe. 3:3), na qual a obra do Espírito, a atividade de revelação, é democratizada entre o povo de Deus. Nada na linguagem de Pedro sugere que ele considerava a experiência e o comportamento dos 120 restritos no tempo, nem indisponível do Espírito Santo – que inspira o ministério profético e as experiências de revelação – “é para vocês, para os seus filhos e para todos os que estão longe, para todos quantos o Senhor nosso Deus chamar” (At. 2:38,39).

Não vejo razão bíblica para considerar o Pentecoste mera “culminação” de uma série de eventos únicos. É, também, a “inauguração” da aplicação experimental das bênçãos espirituais que aqueles eventos tinham o propósito de conseguir. Gaffin parece reconhecer esse fato quando fala das “consequências duradouras” (p.35) do Pentecoste. Com certeza, porém, Pedro as identifica como a doação dos dons espirituais, tais como as línguas, a profecia, bem como outras expressões de atividade revelatória (sonhos e visões, especificamente).

A essência do Pentecoste, segundo Pedro resume, é dupla: prenuncia 1) a presença permanente do Espírito Santo e 2) seu derramamento universal (“todos os povos”). Exatamente. Mas com qual finalidade o Espírito é dado? Com que propósito ele está presente? A resposta é, em grande medida, salvífica e cristológica (v. Jo.15:26, 16:14). Mas não é menos carismática: revestir o povo de Deus com poder para a vida e o ministério.

3. Gaffin argumenta que “Atos pretende documentar uma história completa, uma época incomparável na história da redenção – a propagação do evangelho apostólico, de uma vez por todas, ‘até aos confins da terra’” (p.39). Mas Lucas não diz assim em lugar algum. Nunca sugeriu que o que o Espírito Santo fez naquela “história” (Atos) não pode ser esperado nas “histórias” subsequentes (pós-apostólicas). Nem assevera que Atos era “único” ou “incomparável”. Ao passo que todos reconhecem a existência de elementos incomparáveis em Atos e que, portanto, não podem ser repetidos, Lucas não argumenta, em lugar algum, que a obra carismática do Espírito consta entre os elementos inigualáveis. Não percebo coisa alguma em Atos que subentenda, ou assevere, que chegou ao fim o modo de Deus se relacionar com seu povo, o estar nessa “história” específica.

Gaffin argumenta que “é em termos dessa perspectiva controladora que as experiências milagrosas daqueles no Pentecoste e em outras passagens de Atos têm seu significado” (p.39). Passa, então, a indicar os sinais, maravilhas e milagres como comprovação desse programa missionário apostólico. Mas seria esse seu único significado e função? Nada disso possui aplicação negativa à perpetuidade dos dons, a não ser que Gaffin possa localizar algum texto, qualquer texto, no qual o propósito exclusivo dos milagres e dos dons carismáticos seja a comprovação da missão apostólica. Gaffin isola uma função dos fenômenos religiosos, vincula-a com o período no qual ocorre, e depois conclui que não podem ter nenhuma outra função em nenhum outro período da história eclesiástica. E assim faz sem um único texto bíblico que assim assevere de modo explícito. Esse tipo de reducionismo é alheio ao NT.

Gaffin atribui ênfase ao grande avanço inaugural do evangelho em Samaria e entre os gentios, e insiste que os fenômenos milagrosos que ocorreram naquelas ocasiões desempenharam o papel essencial de atestar essa expansão. Concordo. Mas também devemos focalizar as igrejas que foram implantadas e que surgiram e perseveraram na esteiro do que é denominado “etapas marcadoras da época” na história da redenção. O ministério do Espírito Santo conforme retratado em Atos, 1 Coríntios, Romanos, Efésios, 1 Tessalonicenses e Gálatas indica que os fenômenos milagrosos que acompanharam o início e fundação dessas igrejas deve caracterizar, também, sua edificação e crescimento. Parece que Gaffin está pedindo que acreditemos que porque os dons milagrosos ajudaram a lançar a igreja ao atestar a proclamação original do evangelho, aqueles fenômenos não possuem nenhuma função adicional ou contínua para sustentar e nutrir a própria igreja. Mas essa é uma falsa conclusão, destrutiva de evidências bíblicas.

Gaffin diz que “Atos 2 e os eventos milagrosos subsequentes não visam estabelecer um padrão de ‘reproduções’ do Pentecoste para continuar perpetuamente na história da igreja. Pelo contrário, juntos, se constituem, como já foi dado a entender, um complexo de eventos, completados com o programa apostólico, finalizado, que acompanham” (p.39-40). Mas por que os eventos milagrosos e os dons carismáticos não podem continuar, sem imaginarmos que nisso estaria envolvida uma “repetição” do Pentecoste? Além disso, a qualidade única do Pentecoste como evento histórico da redenção não requer, e nem sequer sugere, a restrição ao período dos dons carismáticos milagrosos. O que Gaffin persiste em “concluir” mediante a inferência teológica não é asseverado, em nenhuma parte, pela própria Bíblia.

Gaffin conclui: “Certamente seria errado argumentar [...] que Lucas pretendia demonstrar que os dons milagrosos e as experiências do poder cessaram juntamente com a história por ele documentada” (p.40). Considero isso confuso, tendo em vista sua afirmação citada acima, de que os eventos milagrosos em Atos subsequentes ao Pentecoste não são para nos contar, conforme a intenção de Lucas, como será o restante da história eclesiástica. Esses eventos (presumidamente profecias, línguas e curas), de acordo com Gaffin, foram “completados pelo programa apostólico, finalizado, que acompanham” (p.40, grifo do autor).

Passa, então, a asseverar que “quanto a isso, observar que em Atos, outros, além dos apóstolos, exercem dons milagrosos (e.g., 6.8), não vem ao caso. Apresentar esse fato como evidência de que semelhantes dons continuam além dos tempos dos apóstolos ‘rompe com o que para Lucas forma um conjunto’” (p.40). Discordo. Creio que seja exatamente esse o propósito – que o ministério milagroso do Espírito Santo é designado, não exclusivamente para os apóstolos, nem somente para a obra fundamental que realizaram. Se, conforme argumenta Gaffin, os fenômenos milagrosos e o ministério apostólico estão juntos no conceito de Lucas, por que, então, outros que não são apóstolos operam milagres? Não basta Gaffin simplesmente asseverar que o fato de haver milagres não-apostólicos é alheio a questão discutida. É um assunto vitalmente importante que o cessacionismo não consegue explicar. Lembremo-nos que é, na realidade, o próprio Lucas que separa esses dois aspectos. Talvez tenha feito assim porque era seu intento!

Gaffin diz: “Outros exercem semelhantes dons pela presença e atividade dos apóstolos; assim fazem sob a ‘supervisão apostólica’, por assim dizer” (p.40; grifo do autor). Onde Lucas ou qualquer outro autor bíblico chega a afirmar isso alguma vez? E mesmo se aceitarmos esse argumento, para que concluiríamos que Deus não quer que a igreja experimente semelhante dons depois da partida dos apóstolos? Mais uma vez, conclusões universalmente aplicáveis foram deduzidas sem justificativa textual. Ao refletir sobre Atos dos Apóstolos, ada percebo na perpetuidade dos dons milagrosos que ameace a integridade ou a incomparabilidade da era apostólica. Essa incomparabilidade é que foi a primeira, e fundamental, não por ter sido milagrosa.

4. No desejo de manter a conexão fechada entre o ministério apostólico e os dons milagrosos, Gaffin diz que é uma “disjunção que é estranha para Lucas” (p.40) argumentar que esse últimos atestam a mensagem (o evangelho) e não necessariamente o mensageiro. Mas semelhante distinção dificilmente é estranha para Lucas, pois menciona cristãos não ligados aos apóstolos que operam milagres, e em nenhum lugar atribui seu poder a qualquer relacionamento ou contato físico com os apóstolos. Nem Lucas, nem qualquer outro autor neotestamentário diz que Deus não poderia nem desejaria atestar a mensagem por meio de sinais e maravilhas quando fosse proclamada por crentes comuns. Quando esta informação é combinada com o fato de que vários crentes comuns realmente tinham exercitado dons milagrosos, a distinção que Gaffin alega ser “alheia” a Lucas parece ser bem familiar para este.

5. Gaffin apresenta duas razões para acreditar na cessação dos dons de cura e de operação de milagres.

Em primeiro lugar, argumenta que o próprio NT registra somente em Atos esses dons em operação. E que “acompanham [...] a disseminação apostólica única e consumada” (p.43). Mas em nenhum momento Atos, ou o NT, chega a dizer que o aspecto incomparável nos apóstolos eram os dons ou milagres que realizavam. Como seria possível argumentar que em razão dos fenômenos milagrosos acompanharem a disseminação apostólica do evangelho, que estes não podem acompanhar a disseminação não-apostólica do mesmo evangelho? O fato de os apóstolos no século I terem terminado a obra deles na divulgação do evangelho não significa que outras obras, em gerações subsequentes, estão terminadas.

Além disso, custa-me entender como o exercício de dons milagrosos por homens e mulheres considerados cristãos comuns, não ligados aos apóstolos, na igreja em Corinto, cujo propósito era edificar, encorajar, consolar, e ajudar uns aos outros para serem mais semelhantes a Jesus, pode, de alguma forma, ser considerado exclusivamente vinculado à alegada “disseminação apostólica, incomparável e terminada, do evangelho”. Essas pessoas não estavam implantando igrejas, nem expandindo o evangelho para além das fronteiras étnicas. Eram simplesmente crentes comuns, enfrentando a vida, e ministrando às necessidades diárias, dores, e problemas de outros cristãos. O mesmo se pode dizer dos crentes em Tessalônica (1Ts.5:19-22), Roma (Rm.12:3-6), Galácia (Gl.3:5) e em outras localidades. Como alguém pode argumentar que semelhantes dons milagrosos perderam sua validade e seu valor prático para levar a efeito o que Deus determinou para eles, simplesmente porque, em certa altura do século I, os apóstolos morreram?

Gaffin argumenta que, por causa da alegada vinculação exclusivista entre o ministério apostólico e os dons milagrosos (que não é asseverado em nenhuma parte das Escrituras), a continuação destes últimos “não [se] pode simplesmente pressupor sua continuação na era pós-apostólica” (p.44). Ao contrário, quando for observado que Paulo descreve a vida eclesiástica normal em 1 Coríntios 12:7-10 que envolve dons milagrosos cujo propósito é edificar os crentes e santificar-lhes a alma – que em nenhum lugar estão exclusiva nem primariamente vinculados com os apóstolos – ou cuja função está reduzida a acompanhar e atestar o ministério deles, o que deveria ser pressuposto é precisamente a continuação de semelhantes dons. Em segundo lugar, Gaffin apela a Tiago 5, passagem sobre a qual fiz minhas considerações no meu ensaio neste livro, o qual submeto à atenção do leitor.



Notas:
[1] V. as considerações de Jack Deere a respeito desse assunto em Surpreendido pelo poder do Espírito, p.54-57.

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Extraído de:

GRUDEM, Wayne (org.). Cessaram os dons espirituais? São Paulo: Editora Vida, 2003, p.75-82.

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