segunda-feira, 28 de março de 2016

Nº 10



O DOADOR E SEUS DONS
por Vincent Cheung

Você já ouviu isso ser dito: “Deseje o doador, e não seus dons”. Eu nunca fui capaz de dizer isso, e gostaria de saber onde estão todos esses semideuses que se podem dar ao luxo de dispensar os dons de Deus, e que pensam ter a opção de fazer essa declaração. Este slogan popular pretende implicar no legítimo ponto de que devemos desejar Deus para seu próprio benefício, e não apenas ou principalmente por causa daquilo que ele pode fazer por nós. Esta é uma lição valiosa, uma vez que Deus é realmente um fim em si mesmo. Ele não é uma ferramenta para nós usarmos, ou um trampolim para nós chegarmos a algo maior, pois não há nada maior. No entanto, esse slogan falha em afirmar esse ponto diretamente, e após isso, ele percorre além disso para afirmar algo que é perigoso e sacrílego.

Se não levarmos a sério as palavras, então, qualquer afirmação poderá ser considerada aceitável ou inaceitável, uma vez que não haverá sentido. Mas se levarmos a sério as palavras, então, o “não” no slogan deverá significar algo, e não deverá significar outras coisas. Ele não diz, “Deseje o doador e os dons”, ou “Deseje o doador mais do que os dons”, ou algo mais elaborado como “Deseje o Doador, estabeleça uma comunhão com ele e, dentro desse contexto, deseje os seus dons para o seu próprio benefício e para o bem do seu Reino” (esse último seria a minha posição). Em vez disso, o slogan diz: “Deseje o Doador, e não os dons”. Às vezes as pessoas percebem que isso não está certo e usam uma das outras formas, mas nosso interesse agora é sobre essa forma onde um “não” é aplicado aos dons.

Há duas considerações que revelam os problemas. Em primeiro lugar, dadas as alternativas, para se usar um “não” na demonstração seria necessário ou sugerir uma rejeição dos dons de Deus ou uma indiferença em relação a eles. Se houver algum desejo deles, então o termo correto seria “mais do que” em vez de “não”. Segundo, embora a palavra “dons” possa ter diferentes significados para cristãos de diferentes tradições, a realidade é que esses dons não são apenas coisas que precisamos para nos destacarmos na vida e no ministério, mas também são coisas que precisamos para sobreviver - até mesmo o ar e a chuva são dons de Deus. Isto é especialmente verdade para os cristãos, que supostamente deveriam possuir a percepção de que todas as coisas boas vêm de Deus, e que deveriam ser encorajados na fé até mesmo por coisas naturalmente benevolentes como comida e água, enquanto os réprobos são endurecidos por elas.

Dito isso, há pelo menos quatro problemas com o slogan.

Primeiro, ele é completamente detestável. Imagine que você esteja segurando um presente para seu filho, e ele lhe diga: "Eu quero que você, e não o seu presente!” Você pensaria: “Sim, e eu estou aqui, dando-lhe o presente. Pegue isso, seu pirralho!”

Em segundo lugar, ela reflete uma atitude orgulhosa e alto-suficiente. Às vezes, quando você sai para comer com um amigo, e você vai pagar sua própria refeição, ele acaba pagando pela sua. Você deseja uma comunhão com ele, não uma refeição grátis. Mas você acha que pode pagar sua própria conta com Deus? A declaração fala como se podemos ter comunhão com ele em pé de igualdade. Novamente, eu admito que isso provavelmente não é a intenção da declaração, mas a palavra “não” torna essa implicação algo difícil de evitar.

Em terceiro lugar, denuncia uma falta de amor por Deus ou tragicamente uma falsa percepção em relação a seus dons.

Quando minha esposa e eu nos conhecemos e decidimos nos casar, estávamos frequentando o ensino médio em diferentes países. (Não nos casamos até que nos formarmos na faculdade, que também era em diferentes locais). Nesse tempos o e-mail não era tão popular e telefonemas eram muito caros. Por isso, escrevíamos muitas cartas um para o outro. Demorava até dez dias para uma carta viajar de um local para o outro. Era pura agonia. Eu esperaria por cada carta com um coração ardente e a abria com as mãos trêmulas. Então, eu cuidadosamente dobrava-a a distância e escrevia uma resposta. Ah, como eu desejava a próxima carta! Até hoje ainda temos as cartas que enviamos um para o outro, juntamente com os envelopes originais. Começamos a usar o e-mail quando estávamos na faculdade, e eu sempre, desde esse dia, salvei todos que ela me enviou, não importando quão trivial fosse.

Porque você acha que eu fiz isso? Você acha que eu fiz isso porque eu sou apaixonado por cartas e e-mails? Se assim for, isso me diz que você não sabe nada sobre amor. Não, eu me comportei dessa maneira porque eu sou apaixonado por ela! Eu sou apaixonado por ela. E eu valorizo as coisas que ela me dá porque elas vêm dela. Eu certamente não penso mais nas cartas do que nela. E num incêndio, eu certamente não iria resgatar as cartas e deixá-la perecer. Isso seria absurdo. Sem dúvida, gostaria de resgatá-la e deixaria as cartas queimarem. Não é uma prioridade, mas não há nenhuma dicotomia.

Se o amor entre um homem e uma mulher é um reflexo do amor entre Cristo e a Igreja, se Deus é meu Pai e Cristo é o meu primeiro amor, e o Espírito Santo é a fonte e a causa até mesmo do amor que tenho para com a minha esposa, então quanto mais eu deveria agonizar receber dele! Assim como seria antinatural impor uma dicotomia entre a minha esposa e os seus presentes, seria antinatural impor algo entre Deus e todas as coisas da vida, quer estejamos nos referindo a alimentos e água, aos amigos, a saúde ou ao poder do Espírito para o ministério. A razão de você achar que “não” precisa desejar comida e água é porque você não vê Deus como seu acesso a comida e água. A razão pela qual você acha que “não” precisa desejar os dons espirituais, ainda que você sinta o fardo do ministério, é porque você acha que eles são opcionais. Você acha que você é forte e rico. Você não está desesperado.

Eu era um mendigo, e Deus me fez um príncipe em Cristo. Mas o meu status depende da minha contínua associação com ele; isto é, dentro de mim eu sempre permanecerei um mendigo. Como ele disse: “Permaneçam em mim, e eu permanecerei em vocês. Nenhum ramo pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira. Vocês também não podem dar fruto, se não permanecerem em mim. Eu sou a videira; vocês são os ramos. Se alguém permanecer em mim e eu nele, esse dá muito fruto; pois sem mim vocês não podem fazer coisa alguma. Se alguém não permanecer em mim, será como o ramo que é jogado fora e seca. Tais ramos são apanhados, lançados ao fogo e queimados. Se vocês permanecerem em mim, e as minhas palavras permanecerem em vocês, pedirão o que quiserem, e lhes será concedido” (João 15:4-7). Ele não disse: “Permanecei em mim e não peçam mais nada”, mas sim “Permanecei em mim e peçam o que quiser”.

Em quarto lugar, e isso resulta do texto acima, esse slogan popular introduz culpa antibíblica, limitações desnecessárias e autoexame desordenado na vida espiritual do cristão, minando sua fé na oração e seu poder no ministério. Ele o convence a ficar desconfiado de seus próprios motivos por causa de um princípio que é contrário à Escritura. Ele liga sua consciência à uma mentira.

Louvado seja Deus, a Sua Palavra nos liberta para desejarmos dele os seus dons, e sermos gratos por eles. Eu desejo Deus e todos os seus dons. Eu quero tudo, e mais do que tudo. E quanto mais eu o amo e conheço, quanto mais eu testemunho da sua majestade e grandeza, quanto mais me torno consciente da minha necessidade dos seus dons, mais eu cresço em meu desejo por eles. Mas quando isso acontece dessa forma, tal desejo é desenvolvido dentro de um contexto de comunhão com ele. Não existe um “não”, sem dicotomia.

Assim, eu me recuso a deixar que as pessoas me enganem, para que rejeite o que Deus está tão ansioso para me dar e que estou tão desesperado para receber. Jesus disse: “Buscai primeiro o Reino, e todas estas coisas vos serão acrescentadas”. Ele não falou contra a preocupação, o que seria contrário a Deus e contrário a fé, apenas foi estabelecida a prioridade certa. Mas quando ele ensinou seus discípulos a orarem – ou seja, no contexto da fé e da comunhão com Deus – ele disse para pedirem o seu pão de cada dia.

Precisamos dos dons de Deus para viver neste mundo e, especialmente, para termos sucesso no trabalho do evangelho. Se nos preocupamos apenas com os dons, então nós somos como os não-cristãos, e seria estranho até mesmo entendê-los como “dons”. Mas se temos comunhão com Deus, então também devemos ter a percepção correta sobre seus dons, e desejá-los com toda a fé e entusiasmo, sem falsa piedade, e sem culpa e vergonha. O Senhor nos disse para pedir e receber, para que a nossa alegria seja completa.


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Extraído de:
http://www.vincentcheung.com/2010/09/29/the-giver-and-his-gifts/

Traduzido por: Dione Cândido Jr.

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